diff --git "a/C015/Y01439.json" "b/C015/Y01439.json" new file mode 100644--- /dev/null +++ "b/C015/Y01439.json" @@ -0,0 +1,3 @@ +[ +{"source_document": "", "creation_year": 1439, "culture": " Portuguese\n", "content": "Produced by Rita Farinha and the Online Distributed\nProofreading Team at https://www.pgdp.net. Produced from\npage images provided by Biblioteca Nacional Digital\nBIBLIOTHECA DE CLASSICOS PORTUGUEZES\nDirector litterario\n_LUCIANO CORDEIRO_\nProprietario e fundador\n_MELLO D'AZEVEDO_\nBIBLIOTHECA DE CLASSICOS PORTUGUEZES\n*Director litterario--LUCIANO CORDEIRO*\n_Proprietario e fundador--MELLO D'AZEVEDO_\nCHRONICA DE EL-REI D. PEDRO I\nPOR\n_Fern\u00e3o Lopes_\nESCRIPTORIO\n_147, Rua dos Retrozeiros, 147_\nLISBOA\nLISBOA\nImpresso na Typ. do \u00abCommercio de Portugal\u00bb _35, Rua Ivens, 41_\n*DUAS PALAVRAS*\nRealisando corajosamente a boa, a piedosa idea de republicar as\nchronicas impressas do--Pae da Historia Nacional,--como Herculano\napellidou Fern\u00e3o Lopes, Mello d'Azevedo, o editor d'esta modesta e\npatriotica bibliotheca podera, hoje, ainda! suprir qualquer explica\u00e7\u00e3o\nprefacial com as palavras do nosso grande historiador moderno, quando ha\nmais de meio seculo tracejava o perfil do encantador--\u00abescripvam\u00bb--do\nbom Rei Dom Duarte:\n--\u00abT\u00e3o raros, ou t\u00e3o pouco lidos andam os antigos escriptores\nportuguezes que muitas pessoas ha, n\u00e3o de todo hospedes nas letras, que\napenas de nome os conhe\u00e7am, _e frequentes vezes nem de nome_.\u00bb\nHoje, ainda!...\nFern\u00e3o Lopes \u00e9 quasi exclusivamente conhecido de nome, e j\u00e1 agora\narejemos toda a nossa idea, mais exactamente toda a nossa observa\u00e7\u00e3o\npositiva e directa: nem de nome o conhece muito litterato gloriosamente\nemproado pelas novas camarilhas do elogio mutuo na fama e na faina da\nrenova\u00e7\u00e3o da Historia e da Arte nacional... por estampilha francelha.\nUma das causas da mingua, a bem dizer, absoluta, de vulgarisa\u00e7\u00e3o dos\nnossos antigos escriptores, dos nossos melhores monumentos litterarios,\nda nossa historia, at\u00e9, indicamol-a j\u00e1 n'outra publica\u00e7\u00e3o d'esta\nbibliotheca: \u00e9 o espirito estreitamente, inconsequentemente monopolista\ndos eruditos ou dos que se querem dar ares de taes; \u00e9 a supersti\u00e7\u00e3o das\nreproduc\u00e7\u00f5es mais ou menos arbitrariamente chamadas fieis, conservadoras\nde uma ortographia, de uma disposi\u00e7\u00e3o typographica at\u00e9, obsoleta,\nindigesta, inacessivel \u00e1 leitura corrente, \u00e1 assimila\u00e7\u00e3o immediata,\nactual, affectiva da multid\u00e3o.\nEm volta d'esta causa ou concorrendo e emparelhando com ella, muitas\noutras se teem accumulado e subsistem, por tal maneira renitentes e\nacrescentadas, que p\u00f3de affirmar-se, como facto incontestavel, que as\npalavras doridas de Herculano teem hoje, mais do que quando elle as\nescreveu,--ha 56 annos!--uma applica\u00e7\u00e3o perfeitamente exacta e justa.\nConhecia-se mais, muito mais, ent\u00e3o, Fern\u00e3o Lopes, ou qualquer outro dos\nnossos antigos escriptores, do que hoje se conhecem e leem. Basta citar\nou v\u00ear o trabalho litterario d'esse tempo, comparando-o com o do nosso.\nQuando eu, e certamente muitos dos leitores, inici\u00e1mos a nossa vida\nintellectual, lia-se, estudava-se, explicava-se o Cam\u00f5es nas escolas.\nNaturalmente, insensivelmente iam penetrando nos nossos cora\u00e7\u00f5es e nos\nnossos cerebros em forma\u00e7\u00e3o as ideas e os sentimentos de honra, de\nintrepidez, de amor da Patria, com tantas outras li\u00e7\u00f5es generosas,\nestimulantes, grandes, que as bellas estrophes transvasam nos espiritos\ns\u00e3os e frescos. Lia-se tambem o Freire d'Andrade, um massador de grandes\ndiscursos e de grandes bombardadas rhetoricas, d'accordo, mas que nos\nencantava, que nos ensinava muitas cousas interessantes, que nos\nenlevava, que nos fazia pensar em grandes cousas: nas terriveis batalhas\nda vida, nos sacrificios e nos esfor\u00e7os valentes com que ellas se\nvencem.\nUm dia, era eu ainda um rapaselho, apanhei entre os velhos livros de meu\npae:--que sabia de c\u00f3r o Virgilio, o Cam\u00f5es, e que me recomendava o Tito\nLivio, o Jo\u00e3o de Barros, etc,--apanhei, pois, um volume, que nunca mais\nvi, e que era uma edi\u00e7\u00e3o em 8.\u00b0 da _Chronica de Dom Pedro_ por Fern\u00e3o\nLopes, exactamente a que vamos l\u00ear agora.\nDevia ser a edi\u00e7\u00e3o do Padre Pereira Bay\u00e3o, do seculo 18.\u00b0, inferior \u00e1\nchamada da Academia sobre a qual \u00e9 feita a nossa.\nComo eu li sofregamente, deliciosamente, o velho livro!\nComo me soube bem aquella prosa simples, ampla, forte--permittam-me a\nexpress\u00e3o;--aquelle _contar_ ingenuo, vivo, e ao mesmo tempo t\u00e3o\nmagestoso pela sincera e nobre lealdade do chronista--que n\u00e3o era um\nadulador Real, nem um _fingidor_ litterario!\nChronista! Historiador \u00e9 que p\u00f3de francamente chamar-se-lhe.\nFoi a primeira revela\u00e7\u00e3o que tive de Fern\u00e3o Lopes e s\u00f3 desejo que t\u00e3o\nagradavel seja a dos que pela primeira vez travarem agora conhecimento\ncom elle.\nPoderia dizer que a v\u00e3o travar simultaneamente com outros escriptores,\nde que Fern\u00e3o Lopes se serviu ou que se serviram d'elle, mas como j\u00e1\ndisse n'outra publica\u00e7\u00e3o, a nossa _Bibliotheca_ n\u00e3o p\u00f4de ainda entrar na\ntentativa das edi\u00e7\u00f5es criticas e por isso estes pequenos prefacios n\u00e3o\ndevem ensaiar essa fei\u00e7\u00e3o que os levariam longe.\nNem mesmo podemos dar do author mais do que uns breves tra\u00e7os dispersos\nque ali\u00e1s se encontram facilmente em publica\u00e7\u00f5es muito accessiveis.\nFern\u00e3o Lopes nasceu n\u00e3o se sabe onde, ainda no seculo 14.\u00b0, parece, como\ndiz Herculano, que pouco antes ou durante--\u00aba gloriosa revolu\u00e7\u00e3o de\n1380,\u00bb--sendo collocado por Dom Jo\u00e3o I, juncto d'algum ou d'alguns dos\nfilhos. Em 1418 confiou-lhe o Rei de Boa Memoria, a guarda e\nservi\u00e7o,--constituido ent\u00e3o independente,--da--\u00abtorre do castello da\ncidade de Lisboa,\u00bb--a primitiva Torre do Tombo.\nAli come\u00e7ou a fazer-se entre as--\u00abescripturas\u00bb--dos velhos e modernos\ntempos, o grande historiador, a quem Dom Duarte por carta de 19 de mar\u00e7o\nde 1434,--isto \u00e9 por uma das suas primeiras iniciativas de Rei,\ndava--\u00abcarrego de poer em caronyca as estorias dos reys que antigamente\nem Portugal foram\u00bb,--com 6$000 reis de ten\u00e7a annual, uns escassos 60$000\nde hoje. No cargo o confirmou o cavalleiroso Affonso V por Carta de 5 de\njunho de 1449.\nTeve uma longa vida Fern\u00e3o Lopes, sendo em 1455 substituido por Gomes\nEannes de Azurara que, briosamente e sem favor, lhe chama:--homem de\ncommunal (descomunhal) sciencia e authoridade.\u00bb\nFez-se a substitui\u00e7\u00e3o--\u00abpor seu prazimento e por fazer a elle merc\u00ea como\n\u00e9 rasom de se dar aos bo\u00f5s servidores,\u00bb--sendo--\u00abj\u00e1 t\u00e3o velho e fraco\nque por si non podia bem servir\u00bb--e sobrevivendo ainda, 5 annos, pelo\nmenos.\nAndaria nos 80.\n\u00c9 uma complicada quest\u00e3o, a de ter Fern\u00e3o Lopes escripto outras\nchronicas al\u00e9m das que teem logrado chegar, sob o seu nome, at\u00e9 n\u00f3s, e a\nde se terem outros escriptores apropriado, mais ou menos de trabalhos\nd'elle. As conhecidas s\u00e3o a de Pedro I que vamos republicar, a de Dom\nFernando, e a de Jo\u00e3o I. Como diz, justamente, Herculano:--\u00abpara a\ngloria de Fern\u00e3o Lopes s\u00e3o monumentos sobejos\u00bb--estes tres monumentos.\nMas que pena que n\u00e3o tenhamos d'elle a historia d'aquelle--\u00abgrande\ndesvayro\u00bb--dos amores de Ignez de Castro e que a gentil figura nos\napare\u00e7a apenas como uma obsess\u00e3o cruel do extraordinario monarcha que\nprocurara j\u00e1 distrahir-se um pouco nos bra\u00e7os de Theresa Louren\u00e7o, a\nbemaventura m\u00e3e de Dom Jo\u00e3o I.\nChronica do senhor rei D. Pedro I oitavo rei de Portugal\n*PROLOGO*\nDeixados os modos e defini\u00e7\u00f5es da justi\u00e7a, que, por desvairadas guisas,\nmuitos em seus livros escrevem, s\u00f3mente d'aquella para que o real\npoderio foi estabelecido, que \u00e9 por serem os maus castigados e os bons\nviverem em paz, \u00e9 nossa inten\u00e7\u00e3o, n'este prologo, muito curtamente\nfalar, n\u00e3o como buscador de novas raz\u00f5es, por propria inven\u00e7\u00e3o achadas,\nmas como ajuntador, em um breve m\u00f3lho, dos ditos de alguns que nos\naprouveram. \u00c1 uma, por espertar os que ouvirem, que entendam parte do\nque fala a historia; \u00e1 outra, por seguirmos inteiramente a ordem do\nnosso arrazoado, no primeiro prologo j\u00e1 tangida.\nE porquanto el-rei Dom Pedro, cujo reinado se segue, usou da justi\u00e7a, de\nque a Deus mais praz que cousa boa que o rei possa fazer, segundo os\nsantos escrevem, e alguns desejam saber que virtude \u00e9 esta, e pois \u00e9\nnecessaria ao rei, se o \u00e9 assim ao povo: v\u00f3s, n'aquelle estilo que o\nsimplesmente apanh\u00e1mos, o podeis l\u00ear por esta maneira.\nJusti\u00e7a \u00e9 uma virtude, que \u00e9 chamada toda virtude; assim que qualquer\nque \u00e9 justo, este cumpre toda virtude; porque a justi\u00e7a, assim como lei\nde Deus, defende que n\u00e3o forniques nem sejas gargant\u00e3o, e isto\nguardando, se cumpre a virtude da castidade e da temperan\u00e7a, e assim\npodeis entender dos outros vicios e virtudes.\nEsta virtude \u00e9 mui necessaria ao rei, e isso mesmo aos seus sujeitos,\nporque, havendo no rei virtude de justi\u00e7a, far\u00e1 leis por que todos vivam\ndireitamente e em paz, e os seus sujeitos sendo justos, cumprir\u00e3o as\nleis que elle puzer, e cumprindo-as n\u00e3o far\u00e3o cousa injusta contra\nnenhum. E tal virtude, como esta, p\u00f3de cada um ganhar por obra de bom\nentendimento, e \u00e1s vezes nascem alguns assim naturalmente a ella\ndispostos, que com grande zelo a executam, posto que a alguns vicios\nsejam inclinados.\nA raz\u00e3o por que esta virtude \u00e9 necessaria nos subditos, \u00e9 por cumprirem\nas leis do principe, que sempre devem de ser ordenadas para todo bem, e\nquem taes leis cumprir sempre bem obrar\u00e1, c\u00e1 as leis s\u00e3o regra do que os\nsujeitos h\u00e3o de fazer, e s\u00e3o chamadas principe n\u00e3o animado, e o rei \u00e9\nprincipe animado, porque ellas representam, com vozes mortas, o que o\nrei diz por sua voz viva: e por\u00e9m a justi\u00e7a \u00e9 muito necessaria, assim no\npovo como no rei, porque sem ella nenhuma cidade nem reino pode estar em\nsocego. Assim, que o reino, onde todo o povo \u00e9 mau, n\u00e3o se pode\nsupportar muito tempo, porque, como a alma supporta o corpo e\npartindo-se d'elle, o corpo se perde, assim a justi\u00e7a supporta os reinos\ne partindo-se d'elles perecem de todo.\nOra, se a virtude da justi\u00e7a \u00e9 necessaria ao povo, muito mais o \u00e9 ao\nrei; porque se a lei \u00e9 regra do que se ha de fazer, muito mais o deve de\nser o rei que a p\u00f5e e o juiz que a ha de encaminhar, porque a lei \u00e9\nprincipe sem alma, como dissemos, e o principe \u00e9 lei e regra da justi\u00e7a\ncom alma. Pois quanto a cousa com alma tem melhoria sobre outra sem\nalma, tanto o rei deve ter excellencia sobre as leis: c\u00e1 o rei deve de\nser de tanta justi\u00e7a e direito, que cumpridamente d\u00ea \u00e1s leis a execu\u00e7\u00e3o;\nde outra guisa, mostrar-se-hia seu reino cheio de boas leis e maus\ncostumes, que era cousa torpe de v\u00ear. Pois duvidar se o rei ha de ser\njusti\u00e7oso, n\u00e3o \u00e9 outra cousa sen\u00e3o duvidar se a regra ha de ser direita,\na qual, se em direitura desfalece, nenhuma cousa direita se pode por\nella fazer.\nOutra raz\u00e3o por que a justi\u00e7a \u00e9 muito necessaria ao rei, assim \u00e9 porque\na justi\u00e7a n\u00e3o t\u00e3o s\u00f3mente aformoseia os reis de virtude corporal, mas\nainda espiritual, pois quanto a formosura do espirito tem avantagem da\ndo corpo, tanta a justi\u00e7a no rei \u00e9 mais necessaria que outra formosura.\nA terceira raz\u00e3o se mostra da perfei\u00e7\u00e3o da bondade, porque ent\u00e3o dizemos\nalguma cousa ser perfeita, quando fazer pode alguma semelhante a si, e\nportanto se chama uma cousa boa, quando sua bondade se pode estender a\noutros, ao menos, sequer por exemplo, e ent\u00e3o se mostra, por pratica,\nquanto cada um \u00e9 bom, quando \u00e9 posto em senhorio.\nPor\u00e9m, cumpre aos reis ser justi\u00e7osos por a todos seus sujeitos poder\nvir bem, e a nenhum o contrario, trabalhando que a justi\u00e7a seja\nguardada, n\u00e3o s\u00f3mente aos naturaes de seu reino, mas ainda aos de f\u00f3ra\nd'elle, porque, negada a justi\u00e7a a alguma pessoa, grande injuria \u00e9 feita\nao principe e a toda sua terra.\nD'esta virtude da justi\u00e7a, que poucos acha que a queiram por hospeda,\nposto que rainha e senhora seja das outras virtudes, segundo diz Tullio,\nusou muito el-rei Dom Pedro, segundo v\u00ear podem os que desejam de o\nsaber, lendo parte de sua historia.\nE pois que elle, com bom desejo, por natural inclina\u00e7\u00e3o, refreou os\nmales, regendo bem seu reino, ainda que outras minguas por elle\npassassem, de que penitencia podia fazer, de cuidar \u00e9, que houve o\ngalard\u00e3o da justi\u00e7a, cuja folha e fructo \u00e9 honrada fama n'este mundo e\nperduravel folgan\u00e7a no outro.\n*CAPITULO I*\n_Do reinado de el-rei Dom Pedro, oitavo rei de Portugal, e das condi\u00e7\u00f5es\nque n'elle havia_.\nMorto el-rei D. Affonso, como haveis ouvido, reinou seu filho, o infante\nDom Pedro, havendo ent\u00e3o de sua idade trinta e sete annos e um mez e\ndezoito dias. E porque dos filhos que houve, e de quem, e por que guisa,\nj\u00e1 compridamente havemos falado, n\u00e3o cumpre aqui arrazoar outra vez; mas\ndas manhas, e condi\u00e7\u00f5es, e estados de cada um, diremos adiante, muito\nbrevemente, onde convier falar de seus feitos.\nEste rei Dom Pedro era muito gago, e foi sempre grande ca\u00e7ador e\nmonteiro, em sendo infante e depois que foi rei, trazendo grande casa de\nca\u00e7adores e mo\u00e7os de monte e de aves, e c\u00e3es, de todas maneiras que para\ntaes jogos eram pertencentes.\nElle era muito viandeiro, sem ser comedor mais que outro homem, que suas\nsalas eram de pra\u00e7a em todos logares por onde andava, fartas de vianda,\nem grande abastan\u00e7a.\nElle foi grande criador de fidalgos de linhagem, porque n'aquelle tempo\nn\u00e3o se costumava ser vassalo, se n\u00e3o filho e neto ou bisneto de fidalgo\nde linhagem; e por usan\u00e7a haviam ent\u00e3o a quantia que ora chamam\nmaravidis, dar-se no ber\u00e7o, logo que o filho do fidalgo nascia, e a\noutro nenhum n\u00e3o.\nEste rei accrescentou muito nas quantias dos fidalgos, depois da morte\nde el-rei seu padre, c\u00e1 n\u00e3o embargando que el-rei D. Affonso fosse\ncomprido de ardimento e muitas bondades, tachavam-no, por\u00e9m, de ser\nescasso, e apertamento de grandeza. E el-rei Dom Pedro era em dar mui\nledo, em tanto, que muitas vezes dizia que lhe afrouxassem a cinta, que\nent\u00e3o usavam n\u00e3o mui apertada, porque se lhe alargasse o corpo por mais\nespa\u00e7osamente poder dar; dizendo que o dia que o rei n\u00e3o dava, n\u00e3o devia\nser havido por rei.\nEra ainda de bom desembargo aos que lhe requeriam bem e merc\u00ea, e tal\nordenan\u00e7a tinha n'isto, que nenhum era detido em sua casa por cousa que\nlhe requeresse.\nAmava muito de fazer justi\u00e7a com direito. E assim como quem faz\ncorrei\u00e7\u00e3o, andava pelo reino, e visitada uma parte n\u00e3o lhe esquecia de\nir v\u00ear a outra, em guisa que poucas vezes acabava um mez em cada logar\nde estada.\nFoi muito mantenedor de suas leis e grande executor das senten\u00e7as\njulgadas, e trabalhava-se quanto, podia das gentes n\u00e3o serem gastadas\npor azo de demandas e prolongados pleitos.\nE se a Escriptura affirma que, por o rei n\u00e3o fazer justi\u00e7a, vem as\ntempestades e tribula\u00e7\u00f5es sobre o povo, n\u00e3o se p\u00f3de assim dizer d'este,\nc\u00e1 n\u00e3o achamos, em quanto reinou, que a nenhum perdoasse morte de alguma\npessoa, nem que a merecesse por outra guisa, nem lh'a mudasse em tal\npena por que pudesse escapar a vida.\nA toda gente era galardoador dos servi\u00e7os que lhe fizessem, e n\u00e3o\ns\u00f3mente dos que faziam a elle, mas dos que haviam feitos a seu padre, e\nnunca colheu a nenhum cousa que lhe seu padre desse, mas mantinha-a e\naccrescentava n'ella.\nEste rei n\u00e3o quiz casar: depois da morte de Dona Ignez, em sendo\ninfante, nem depois que reinou, lhe prove receber mulher; mas houve\namigas com que dormiu, e de nenhuma houve filhos, salvo de uma dona,\nnatural de Galliza, que chamaram Dona Thereza, que pariu um filho que\nhouve nome Dom Jo\u00e3o, que foi mestre de Aviz em Portugal e depois rei,\ncomo adiante ouvireis, o qual nasceu em Lisboa onze dias do mez de\nabril, \u00e1s tres horas depois do meio dia, no primeiro anno do seu\nreinado. E mandou o el-rei criar, em quanto foi pequeno, a Louren\u00e7o\nMartins da Pra\u00e7a, um dos honrados cidad\u00e3os d'essa cidade, que morava\njunto com a igreja cathedral onde chamam a pra\u00e7a dos Canos, e depois o\ndeu, que o criasse, a Dom Nuno Freire de Andrade, mestre da Cavallaria\nda ordem de Christo.\n*CAPITULO II*\n_Como el rei de Castella mandou pelo corpo da rainha Dona Maria, sua\nmadre, e da carta que enviou a el-rei de Portugal, seu tio_.\nN'esta sez\u00e3o que el rei Dom Pedro come\u00e7ou de reinar, ordenou el-rei de\nCastella de enviar pelo corpo da rainha Dona Maria, sua madre, que se\nfinara em Portugal vivendo ainda el-rei Dom Affonso, seu padre, como em\nalguns logares d'este livro faz men\u00e7\u00e3o; e fez saber por sua carta a\nel-rei Dom Pedro, seu tio, como havia vontade de a trasladar, para a p\u00f4r\nem Sevilha, na capella dos reis, com el-rei Dom Affonso, seu padre; e\nordenou, para irem com o corpo da rainha, o arcebispo de Sevilha e\noutros prelados de seu reino, e d\u00eas-ahi mandou diante, para correger\ntodas as cousas que cumpriam para o corpo ir honradamente, Gomes Peres,\nseu dispenseiro m\u00f3r, ao qual o corpo havia de ser entregue, para ordenar\ntudo o que mister fazia \u00e1 sua trasladac\u00e3o, para quando os prelados\nviessem, que achassem tudo prestes e se partissem logo.\nA el-rei Dom Pedro prouve d'isto muito, e escreveu-lhe que mandasse por\nelle, quando por bem tivesse: e el-rei de Castella enviou logo aquelle\nseu dispenseiro, e foi-lhe entregue o corpo, na cidade de Evora onde\njazia, para ordenar seus corregimentos, segundo a ordenan\u00e7a que lhe era\ndada. E quando o arcebispo, e os outros prelados e gentes vieram pelo\ncorpo da rainha, trouxeram a el-rei Dom Pedro uma carta de el-rei de\nCastella, seu sobrinho, que dizia n'esta guisa.\n\u00abRei, tio. N\u00f3s, el-rei de Castella e de Le\u00e3o, vos enviamos muito saudar\ncomo aquelle que muito prezamos e para que queriamos tanta vida e saude,\ncom honra, como para n\u00f3s mesmo.\n\u00abRei, fazemos-vos saber que vimos uma carta de cren\u00e7a que nos enviastes\npor Martim Vasques e Gon\u00e7alo Annes de Beja, vossos vassalos, e\ndisseram-nos de vossa parte a cren\u00e7a que lhes mandastes.\n\u00abE rei, tio, nossa ten\u00e7\u00e3o \u00e9 de vos amar, e guardar sempre os bons\ndividos que comvosco havemos, e fazer sempre por vossa honra como por\nnossa mesma.\n\u00abE porquanto a nosso servi\u00e7o e vosso cumpria haverem de ser declaradas\nalgumas cousas conteudas nas posturas que entre n\u00f3s havemos de p\u00f4r,\nassim sobre casamentos de vossos filhos com nossas filhas, n\u00f3s fal\u00e1mos\ncom o dito Martim Vasques e Gon\u00e7alo Annes toda nossa ten\u00e7\u00e3o, e enviamos\nall\u00e1 sobre isto Jo\u00e3o Fernandes de Melgarejo, chanceller do nosso s\u00eallo\nda puridade, e rogamos-vos que o creaes do que vos da nossa parte\ndisser.\n\u00abOutro sim enviamos, para trazer o corpo da rainha, nossa madre, para a\nenterrar aqui em Sevilha, o arcebispo d'esta cidade e outros prelados de\nnossos reinos, e rogamos-vos que essas joias que ella deixou, que as\nmandeis dar ao dito Jo\u00e3o Fernandes, e n\u00f3s agradecer-vol-o-hemos. Dada,\netc.\u00bb\nEl-rei Dom Pedro fez outorgar o corpo da rainha Dona Maria, sua irm\u00e3,\n\u00e1quelle embaixador de el-rei de Castella; e foi-lhe feita grande honra,\nassim por el-rei, como pelos prelados que por ella vinham. E muito\nacompanhada at\u00e9 ao extremo, e d'ahi at\u00e9 \u00e1 cidade de Sevilha, a saiu\nel-rei seu filho a receber com muita clerezia e grandes senhores e\nfidalgos que ahi eram com el-rei. E feitas suas exequias mui\nhonradamente, foi posto o seu corpo na capella dos reis, a cerca de\nel-rei Dom Affonso, seu marido, onde ora jaz.\nSobre os casamentos dos filhos de el-rei Dom Pedro com as filhas de\nel-rei de Castella, por que Jo\u00e3o Fernandes era enviado, foram faladas\nmuitas cousas com el-rei de Portugal, e n\u00e3o se accordando por ent\u00e3o em\nalgumas d'ellas, depois acertaram todas suas aven\u00e7as, como adiante\nouvireis.\n*CAPITULO III*\n_Das cartas que o papa, e el-rei da Arag\u00e3o enviaram a el-rei de Portugal\nsobre a morte de el-rei, seu padre_.\nEl-rei Dom Pedro escrevera ao papa, e a el-rei de Arag\u00e3o, por novas,\nquando el-rei Dom Affonso morreu, como seu padre era morto, e elle\nal\u00e7ado por rei em Portugal.\nE tendo cada um cuidado de lhe responder, chegaram lhe n'esta sez\u00e3o suas\nrespostas. E a letra do papa dizia assim:\n\u00abInnocencio, bispo, servo dos servos de Deus, ao muito amado, em\nChristo, filho Dom Pedro, mui nobre rei de Portugal, saude e apostolical\nben\u00e7\u00e3o.\nPorquanto, muito amado filho, por tuas letras, e fama, fomos certificado\ncomo o mui claro, de nobre memoria, el-rei Dom Affonso teu padre, se\nfinou d'este mundo, sua morte foi a n\u00f3s, e \u00e9, mui grande nojo e\ntristeza. E n\u00e3o sem raz\u00e3o o devemos ser, quando em nosso cora\u00e7\u00e3o\ncuidamos nas bondades e virtudes de que sua real alteza era muito\nennobrecida, por cuja raz\u00e3o o muito amavamos, desejando-lhe que, entre\ntodos os principes do mundo, o Senhor o accrescentasse, e estendesse seu\nreal estado, com prolongamento de bem aventurados dias, nos quaes,\nacabando sua honrada velhice, a ti, seu primogenito filho, deixasse o\nregimento e success\u00e3o do reino em firme concordia com teus visinhos.\nE pois assim \u00e9 que o Senhor Deus, em cuja m\u00e3o \u00e9 o poderio de dar a cada\num vida e morte, lhe prouve de piedosamente o levar d'este mundo, n\u00f3s\np\u00f4mos fim e acabamento \u00e1 nossa d\u00f4r e tristeza, consolando-nos n'este\nSenhor que d\u00e1 e priva e tolhe, quando quer que lhe praz, no qual havemos\nfirme esperan\u00e7a que nos altos ceus dar\u00e1 bom galard\u00e3o e gloria \u00e1 alma de\nel-rei, teu padre, pois, emquanto n'este mundo viveu, se trabalhou de o\nservir com bons merecimentos, e lhe aprouve com dignas virtudes.\nE assim, muito amado filho, piedosamente te consolamos, que te consoles\nno Senhor Deus, e consideres em tua vontade como succedes no regimento\nde teu padre, o qual, por exemplo da vida, se mostrou sempre ser fiel\ncatholico.\nPor\u00e9m, requeremos \u00e1 tua real clareza, que sempre, com firme desejo,\nvivas em temor do Senhor Deus, honrando a sua santa igreja, e, sendo\nfavoravel \u00e1s ecclesiasticas pessoas, as mantenhas sempre em seus\ndireitos e liberdades; e que sejas amador e defensor das viuvas e dos\norf\u00e3os, al\u00e7ando os aggravos aos teus subditos, que lhes n\u00e3o seja feita\ninjuria; e que, sem recebimento de alguma pessoa, sempre sejas honrador\ne amador da justi\u00e7a, de guisa que, por tuas obras, sejas chamado por\nnome de rei que bem rege: e sei certo, se o assim fizeres, que sempre em\nteus dias viver\u00e1s em paz e folgan\u00e7a, havendo Deus em tua ajuda, e a sua\nsanta igreja te haver\u00e1 em sua encommenda, sendo prestes para toda a tua\nhonra e cumprimento de justas peti\u00e7\u00f5es. Diante em Avinh\u00e3o, etc.\u00bb\nN'outra carta, de el-rei de Arag\u00e3o, eram conteudas estas raz\u00f5es:\n\u00abMuito alto e mui nobre Dom Pedro, pela gra\u00e7a de Deus, rei de Portugal e\ndo Algarve: Dom Pedro, por essa mesma gra\u00e7a, rei de Arag\u00e3o, e de\nValencia, e de Mayorca, e de Sardenha, e de Corsega, e conde de\nBarcelona e de Rossilh\u00e3o, saude, como a rei que temos em logar de irm\u00e3o,\nque muito amamos e prezamos, e de que muito fiamos, e para que queriamos\nmuita honra e boa ventura, com tanta vida e saude como para n\u00f3s mesmo.\n\u00abRei, irm\u00e3o. Recebemos vossa letra, pela qual nos significastes a morte\ndo mui alto e mui honrado el-rei Dom Affonso de Portugal, vosso padre, a\nque Deus perdoe. E por essa mesma nos fizestes saber que v\u00f3s, assim como\nseu primogenito e herdeiro dos ditos reinos, ereis levantado por rei de\nPortugal. Das quaes novas, em verdade, Rei irm\u00e3o, houvemos desprazer e\nprazer juntamente: desprazer da morte do dito rei, o qual sabiamos que\nnos amava como seu filho e n\u00f3s a elle como a nosso muito amado padre;\nmas como da morte nenhuma pessoa seja isenta, e o dito rei seja saido da\nmiseria d'este mundo, doendo-nos d'ella, se por n\u00f3s alguma cousa pudesse\nser feita, muito prestes eramos de o fazer, por\u00e9m rogamos a Deus, em\ncuja m\u00e3o \u00e9 vida e morte de cada um, que receba sua alma com os seus\nsantos no paraiso, fiando n'elle que o ha feito. Prazer outro sim\nhouvemos mui grande, Rei irm\u00e3o, quando soubemos que ereis al\u00e7ado em rei\nde Portugal e do Algarve, pela success\u00e3o herdeira a v\u00f3s por direito\npertencente, e crendo saber que, assim como n\u00f3s tinhamos o dito rei em\nconta e logar de padre, assim entendemos de ter a v\u00f3s em conta de nosso\nirm\u00e3o, e fazer por v\u00f3s toda cousa que seja honra e prazer vosso, e\nproveito de vosso senhorio, esperando certamente, de v\u00f3s, que fareis\nsemelhante por n\u00f3s, e por nossos reinos e terras.\nE porquanto, irm\u00e3o Rei, segundo \u00e9 conteudo em vossa letra, v\u00f3s desejaes\nsaber o bom estado de nossa pessoa, e da rainha, e de nossos filhos, a\nprazer vosso vos significamos que somos todos s\u00e3os e em boa disposi\u00e7\u00e3o\nde nossas pessoas, merc\u00eas a Deus: rogando-vos, mui caramente, que de\nvosso bom estado e real casa, nos certifiqueis por vossa carta, e s\u00eade\ncerto que nos fareis assignado prazer. D'ante em Sarago\u00e7a, etc.\u00bb\n*CAPITULO IV*\n_Da maneira que el-rei D. Pedro tinha nos desembargos de sua casa_.\nPois d'este rei achamos escripto que era muito amado de seu povo, pelo\nmanter em direito e justi\u00e7a, d\u00eas-ahi boa governan\u00e7a que em seu reino\ntinha, bem \u00e9 que digamos de cada cousa um pouco, por v\u00eardes parte dos\nmodos antigos.\nNa ordenan\u00e7a de todos os desembargos, tinha el-rei esta maneira: quantas\npeti\u00e7\u00f5es lhe a elle davam, iam \u00e1 m\u00e3o de Gon\u00e7alo Vasques de Goes,\nescriv\u00e3o da puridade, e elle as dava a um escriv\u00e3o, qual lhe prazia, o\nqual tinha encargo de as repartir, e dar cada uma aos desembargadores a\nque pertenciam; e as peti\u00e7\u00f5es que eram desembargos de commum curso,\naquelles, por que deviam passar, mandavam logo fazer as cartas a seus\nescriv\u00e3es, de guisa que n'aquelle dia, ou no outro seguinte, eram as\npartes desembargadas, e o escriv\u00e3o que o assim n\u00e3o fazia, perdia a merc\u00ea\nde el-rei por ello.\nAs outras peti\u00e7\u00f5es, que eram de gra\u00e7a e merc\u00ea, que pertenciam \u00e1 sua\nfazenda, fazia-as p\u00f4r em ementa a seu escriv\u00e3o, e este escrevia por sua\nm\u00e3o as peti\u00e7\u00f5es que assim levava, cujas eram, e de que cousa, e este\nescripto ficava na m\u00e3o do desembargador; e quando as depois desembargava\ncom el-rei, se achava mais peti\u00e7\u00f5es postas na ementa, que aquellas que\nlhe elle mandara p\u00f4r, visto o escripto que em seu poder ficava, por tal\nerro perdia a merc\u00ea de el-rei; e como aquella ementa era desembargada\ncom el-rei, diziam os desembargadores a cada uma pessoa a merc\u00ea que lhe\nel-rei fazia, e mandavam a seus escriv\u00e3es que lhe fizessem logo as\ncartas, e n'esse dia haviam de ser feitas, ou no outro o mais tardar,\nsob a pena que dissemos.\nE se ahi havia taes porfiosos que andavam mais ap\u00f3s el-rei, afincando-o\ncom outras peti\u00e7\u00f5es depois que haviam desembargo de sim ou de n\u00e3o, ou\nmoravam mais tempo na c\u00f4rte, se era honrado pagava certa pena de\ndinheiro, e se pessoa refece davam-lhe vinte a\u00e7outes na pra\u00e7a, e\nmandavam-no para casa; e trazia el-rei inculcas que lhe soubessem parte\nde taes homens, por se cumprir n'elles sua ordena\u00e7\u00e3o.\nPor el-rei n\u00e3o ser annojado de v\u00ear duas vezes as merc\u00eas que fazia, uma\npor ementa e outra por cartas, e por aquelles que o requeriam haverem\nmais toste seu desembargo, fazia-se d'esta guisa: quando el-rei\noutorgava algumas merc\u00eas a alguem, os que lhe haviam de dar desembargo\nescreviam logo na ementa, perante el-rei, a maneira como lh'as dava, e\nem cada um desembargo punha el-rei seu signal, e o chanceller estava\npresente, quando podia, para v\u00ear como as el-rei desembargava. E tanto\nque os desembargadores tinham as cartas feitas e assignadas,\nmandavam-nas ao chanceller com o rol da ementa que el-rei assignara, por\nn\u00e3o p\u00f4r duvida em alguma d'ellas, e logo n'esse dia haviam de ser\nselladas, ou no outro at\u00e9 ao jantar.\nSe el-rei ia a monte ou \u00e1 ca\u00e7a, em que durasse mais de quatro dias, por\nnenhuns serem detidos por elle, juntavam-se os que tinham as peti\u00e7\u00f5es\ndas gra\u00e7as e viam aquillo que cada um pedia, e se lhe parecia que n\u00e3o\nera bem de lh'o el-rei fazer, escreviam-lhe pelo meudo por qual raz\u00e3o, e\nas que viam que devia outorgar, punham-lhe isso mesmo por qu\u00ea, e\nassignavam todos a ementa, e levava-a um d'elles a el-rei, por lhe dizer\na raz\u00e3o que os movera a fazer ou n\u00e3o cada uma cousa; e d'esta guisa\nhaviam as gentes bom desembargo, e el-rei era f\u00f3ra de muito nojo e\nafincamento.\nSe alguns concelhos haviam de recadar com elle, mandava-lhe que\nenviassem em escripto cerrado e sellado, por um porteiro, tudo o que\nmister haviam, e logo lhe el-rei taxava que houvesse por dia quatro\nsoldos, e mais n\u00e3o, e el-rei, visto o que lhe pediam, livrava-o logo,\nsem outra deten\u00e7a, como achava que era direito. E se tal cousa era que\ncumpria de esse concelho enviar a elle alguns bons homens, e entendidos,\nmandava el-rei que n\u00e3o enviassem mais de um, por fazer o concelho mais\npouca despeza; e mandava que tal como este n\u00e3o houvesse por dia mais que\nvinte soldos.\n*CAPITULO V*\n_De algumas cousas que el-rei Dom Pedro ordenou por bem de justi\u00e7a e\nprol de seu povo_.\nAssim como este rei Dom Pedro era amador de trigosa justi\u00e7a n'aquelles\nque achado era que o mereciam, assim trabalhava que os feitos civeis n\u00e3o\nfossem prolongados, guardando a cada um seu direito cumpridamente.\nE porque achou que os procuradores prolongavam os feitos como n\u00e3o\ndeviam, e davam azo de haver hi maliciosas demandas, e o peior, e muito\nde estranhar, que levavam de ambas as partes, ajudando um contra o\noutro, mandou que em sua casa, e todo o seu reino, n\u00e3o houvesse\nadvogados nenhuns; e encommendou aos juizes e ouvidores que n\u00e3o fossem\nmais em favor de uma parte que outra; nem se movessem por nenhuma cobi\u00e7a\na tomar servi\u00e7os alguns por que a justi\u00e7a fosse vendida, mas que se\ntrabalhassem cedo de livrar os feitos, de guisa que brevemente, e com\ndireito, fossem desembargados, como cumpria. E sabendo que eram a ello\nnegligentes, que lh'o estranharia nos corpos e haveres, e lhe faria\npagar \u00e1s partes toda perda que por ello houvessem.\nIsto assim ordenado, soube el-rei, a cabo de pouco tempo, que um seu\ndesembargador, de que elle muito fiava, chamado por nome mestre Gon\u00e7alo\ndas Decretaes, levara peita de uma das partes que perante elle andavam a\nfeito, pela qual julgou e deu senten\u00e7a. E el-rei, sabendo isto, houve\nmui grande pezar, e deitou-o logo fora de sua merc\u00ea por sempre, e\ndegradou elle e os filhos a dez leguas de onde quer que elle fosse:\npor\u00e9m, diziam todos os que isto viram, que aquelle de que elle levara a\npeita tinha direito n'aquelle pleito.\nEnt\u00e3o ordenou el-rei, e p\u00f4z defeza em sua casa e todo seu senhorio, que\nnenhum que tivesse poderio de fazer justi\u00e7a, n\u00e3o filhasse peita nenhuma\ndos que houvessem pleitos perante elles; e se lhe fosse provado que a\ntom\u00e1ra, que morresse por ello, e perdesse os bens para a cor\u00f4a do reino.\nE se taes juizes e officiaes tomassem servi\u00e7os de quaesquer outros que\nperante elles n\u00e3o houvessem pleitos, que perdessem a sua merc\u00ea, salvo se\nfosse de homem que n\u00e3o houvesse demanda em todo seu senhorio, que aduz\npoderia ser achado. E mandou, ao corregedor da c\u00f4rte e ouvidores, que\nn\u00e3o conhecessem de feitos nenhuns, salvo se fossem entre taes pessoas de\nque os juizes das terras n\u00e3o podessem fazer direito, sen\u00e3o quando lhe\nviessem por appella\u00e7\u00e3o ou aggravo.\nSabendo, outrosim, el-rei, como alguns, que eram casados, deixavam suas\nmulheres e filhos que tinham, e tomavam barreg\u00e3s, com que \u00e1parte faziam\nvivenda, e outros taes que com suas mulheres as tinham em casa: mandou,\ne p\u00f4z por lei, que qualquer casado que com barreg\u00e3 vivesse, ou a tivesse\ndentro em sua casa, se fosse fidalgo ou vassalo, que d'elle ou de outrem\ntivesse maravidis, que os perdesse, e segundo os estados das pessoas,\nassim ordenou as penas do dinheiro e degredo, at\u00e9 mandar que\npublicamente, pela terceira vez, elles e ellas por isto fossem\na\u00e7outados. E quando diziam a el-rei que se aggravavam muitos de tal\nordenan\u00e7a como esta, respondia elle que assim o entendia por servi\u00e7o de\nDeus e seu, e prol d'elles todos. E esta ordenan\u00e7a mesma, e penas, p\u00f4z\nnas mulheres que barreg\u00e3s fossem de clerigos de ordens sacras.\nElle defendeu e mandou, em Lisboa, que nenhuma mulher de qualquer estado\nque fosse, n\u00e3o entrasse dentro no arrabalde dos mouros, de dia nem de\nnoite, sob pena de ser enforcada. E mandou que qualquer judeu ou mouro,\nque depois de sol posto, fosse achado pela cidade, que com preg\u00e3o\npublicamente fosse a\u00e7outado por ella.\nFalando el-rei um dia nos feitos da justi\u00e7a, disse que vontade era, e\nf\u00f4ra sempre de manter os povos de seu reino n'ella, e estremadamente\nfazer direito de si mesmo. E porquanto elle sentia que o m\u00f3r aggravo que\nelle e seus filhos, e outros alguns de seu senhorio, faziam aos povos de\nsua terra, assim no tomar das viandas por pre\u00e7o mais baixo do que se\nvendiam, que por\u00e9m elle mandava que nenhum de sua casa, nem dos\ninfantes, nem d'outro nenhum que em sua merc\u00ea e reinos vivesse, que\ncargo tivesse de tomar aves, que n\u00e3o tomasse gallinhas, nem patos, nem\ncabritos, nem leit\u00f5es, nem outras nenhumas cousas acostumadas de tomar,\nsalvo compradas \u00e1 vontade de seu dono; e sobre isto p\u00f4z pena de pris\u00e3o,\ne dinheiros, \u00e1s honradas pessoas, e aos gallinheiros e pessoas vis,\na\u00e7outados pelo logar hu as tomassem, e deitados f\u00f3ra de sua merc\u00ea.\nMandou mais aos estribeiros seus e de seus filhos, e a todos os de sua\nterra, que n\u00e3o mandassem a nenhum logar por palha doada, salvo se a\nhouvesse de haver de f\u00f4ro; mas que pelo azemel, que fosse por ella,\nmandasse pagar pela carga cavallar de palha, ou de restolho empalhado,\ntr\u00eas soldos e pela carga asnal, dois. E o azemel que por ella fosse, e a\nd'esta guisa n\u00e3o pagasse, que pela primeira vez fosse a\u00e7outado e\ntalhadas as orelhas, e pela segunda fosse enforcado: e outra tal pena\nmandava dar ao lavrador que n\u00e3o empalhasse toda a palha que houvesse.\nE quando lhe diziam que punha mui grandes penas por mui pequenos\nexcessos, dava resposta dizendo assim, que a pena que os homens mais\nreceavam era a morte, e que se por esta se n\u00e3o cavidassem de mal fazer,\nque \u00e1s outras davam passada, e que boa cousa era enforcar um ou dois,\npelos outros todos serem castigados, e que assim o entendia por servi\u00e7o\nde Deus e prol de seu povo.\nElle corregeu as medidas de p\u00e3o de todo Portugal, e ordenou outras\ncousas por bom paramento e proveito de sua terra, das quaes n\u00e3o fazemos\nmais longo processo por n\u00e3o saber quanto prazeriam aos que as ouvissem.\n*CAPITULO VI*\n_Como el-rei mandou degolar dois seus criados, porque roubaram um judeu\ne o mataram_.\nEste rei Dom Pedro, emquanto viveu, usou muito de justi\u00e7a sem affei\u00e7\u00e3o,\ntendo tal igualdade em fazer direito, que a nenhum perdoava os erros que\nfazia, por cria\u00e7\u00e3o nem bem queren\u00e7a que com elle houvesse. E se dizem\nque aquelle \u00e9 bem aventurado rei que por si esquadrinha os males e\nfor\u00e7as que fazem aos pobres, e bem \u00e9 este do conto de taes, c\u00e1 elle era\nledo de os ouvir, e folgava em lhes fazer direito, de guisa que todos\nviviam em paz. E era ainda t\u00e3o zeloso de fazer justi\u00e7a, especialmente\ndos que travessos eram, que perante si os mandava metter a tormento, e\nse confessar n\u00e3o queriam, elle se desvestia de seus reaes pannos, e por\nsua m\u00e3o a\u00e7outava os malfeitores; e pelo que d'ello muito pasmavam seus\nconselheiros e outros alguns, annojava-se de os ouvir, e n\u00e3o o podiam,\nquitar d'ello por nenhuma guisa.\nNenhum feito crime mandava que se desembargasse salvo perante elle, e se\nouvia novas de algum ladr\u00e3o ou malfeitor, alongado muito d'onde elle\nfosse, falava com algum seu de que se fiava, promettendo-lhe merc\u00eas por\nlh'o ir buscar, e mandava-lhe que n\u00e3o viesse ante elle at\u00e9 que todavia\nlh'o trouxesse \u00e1 m\u00e3o. E assim lh'os traziam presos do cabo do reino, e\nlh'os apresentavam hu quer que estava. E da mesa se levantava, se\nchegavam a tempo que elle comesse, por os fazer logo metter a tormento,\ne elle mesmo punha n'elles m\u00e3o quando via que confessar n\u00e3o queriam,\nferindo-os cruelmente at\u00e9 que confessavam.\nA todo logar onde el-rei ia, sempre acharieis prestes com um a\u00e7oute o\nque de tal officio tinha encargo, em guisa que como a el-rei traziam\nalgum malfeitor, e elle dizia:--chamem-me fo\u00e3o, que traga o\na\u00e7oute,--logo elle era prestes, sem outra tardan\u00e7a.\nE pois que escrevemos que foi justi\u00e7oso, por fazer direito em reger seu\npovo, bem \u00e9 que ou\u00e7aes duas ou tr\u00eas cousas, por v\u00eardes o geito que\nn'isto tinha.\nAssim adveiu que pousando elle nos pa\u00e7os de Bellas, que elle fizera,\ndois seus escudeiros que gram tempo havia que com elle viviam, sendo\nambos parceiros, houveram conselho que fossem roubar um judeu que pelos\nmontes andava vendendo especiaria e outras cousas. E foi assim, de\nfeito, que foram buscar aquella suja pr\u00e9a, e roubaram-no de tudo, e, o\npeior d'isto, foi morto por elles. Sua ventura, que lhe foi contraria,\nazou de tal guisa que foram logo presos e trazidos a el rei, alli hu\npousava.\nEl-rei, como os viu, tomou gram prazer por serem filhados, e come\u00e7ou-os\nde perguntar como f\u00f4ra aquillo. Elles, pensando que longa cria\u00e7\u00e3o e\nservi\u00e7o que lhe feito haviam, o demovesse a ter algum geito com elles,\nn\u00e3o tal como tinha com outras pessoas, come\u00e7aram de negar, dizendo que\nde tal cousa n\u00e3o sabiam parte.\nElle, que sabia j\u00e1 de que guisa f\u00f4ra, disse que n\u00e3o haviam por que mais\nnegar, que ou confessassem como o mataram, sen\u00e3o, que a poder de crueis\na\u00e7outes lhe faria dizer a verdade.\nElles em negando viram que el-rei queria p\u00f4r em obra o que lhe por\npalavra dizia, confessaram tudo assim como f\u00f4ra; e el-rei, sorrindo-se,\ndisse que fizeram bem, que tomar queriam mister de ladr\u00f5es e matar\nhomens pelos caminhos, de se ensinarem primeiro nos judeus, e depois\nviriam aos christ\u00e3os.\nE em dizendo estas e outras palavras, passeava perante elles de uma\nparte \u00e1 outra, e parece que lembrando-lhe a cria\u00e7\u00e3o que n'elles fizera,\ne como os queria mandar matar, vinham-lhe as lagrimas aos olhos, por\nvezes. Depois, tornava asperamente contra elles, reprehendendo-os muito\ndo que feito haviam. E assim andou por um grande espa\u00e7o.\nOs que hi estavam, que aquesto viam, suspeitando mal de suas raz\u00f5es,\nafincavam-se muito a pedir merc\u00ea por elles, dizendo que por um judeu\nastroso n\u00e3o era bem morrerem taes homens, e que bem era de os castigar\npor degredo ou outra alguma pena, mas n\u00e3o mostrar contra aquelles que\ncriara, pelo primeiro erro, t\u00e3o grande crueza.\nEl-rei, ouvindo todos, respondia sempre que dos judeus viriam depois aos\nchrist\u00e3os.\nEm fim d'estas e outras raz\u00f5es, mandou que os degolassem.\nE foi assim feito.\n*CAPITULO VII*\n_Como el-rei quizera metter um bispo a tormento porque dormia com uma\nmulher casada_.\nN\u00e3o s\u00f3mente usava el-rei de justi\u00e7a contra aquelles que raz\u00e3o tinha,\nassim como leigos e semelhantes pessoas, mas assim ardia o cora\u00e7\u00e3o\nd'elle de fazer justi\u00e7a dos maus, que n\u00e3o queriam guardar sua\njurisdic\u00e7\u00e3o, aos clerigos tambem, de ordens pequenas, como de maiores. E\nse lhe pediam que o mandasse entregar a seu vigario, dizia que o\npuzessem na forca e que assim o entregassem a Jesus Christo, que era seu\nVigario, que fizesse d'elle direito no outro mundo. E elle por seu corpo\nos queria punir e atormentar, assim como quizera fazer a um bispo do\nPorto, na maneira que vos contaremos.\nCerto foi, e n\u00e3o o ponhaes em duvida, que el-rei, partindo de entre\nDouro e Minho, por vir \u00e1 cidade do Porto, foi informado que o bispo\nd'esse lugar, que ent\u00e3o tinha gram fama de fazenda e honra, dormia com\numa mulher de um cidad\u00e3o, dos bons que havia na dita cidade, e que elle\nn\u00e3o era ousado de tornar a ello, com espanto de amea\u00e7as de morte que lhe\no bispo mandava p\u00f4r.\nEl-rei, quando isto ouviu, por saber de que guisa era, n\u00e3o via o dia que\nestivesse com elle, para lh'o haver de perguntar.\nE logo, sem muita tardan\u00e7a, depois que chegou ao logar, e houve comido,\nmandou dizer ao bispo que fosse ao pa\u00e7o, que o havia mister por cousas\nde seu servi\u00e7o. Falou com seus porteiros, que depois que o bispo\nentrasse na camara, lan\u00e7assem todos f\u00f3ra do pa\u00e7o, tambem os do bispo\ncomo quaesquer outros, e que ainda que alguns do conselho viessem, que\nn\u00e3o deixassem entrar nenhum dentro, mas que lhe dissessem que se fossem\npara as pousadas, c\u00e1 elle tinha de fazer uma cousa em que n\u00e3o queria que\nfossem presentes.\nO bispo, como veiu, entrou na camara onde el-rei estava, e os porteiros\nfizeram logo ir todos os seus e os outros, em guisa que no pa\u00e7o n\u00e3o\nficou nenhum, e foi livre de toda a gente.\nEl-rei, como foi \u00e1parte com o bispo, desvestiu-se logo e ficou em uma\nsaia de escarlata, e por sua m\u00e3o tirou ao bispo todas as suas\nvestiduras, e come\u00e7ou de o requerer que lhe confessasse a verdade\nd'aquelle maleficio em que assim era culpado: e em lhe dizendo isto,\ntinha na m\u00e3o um grande a\u00e7oute para o brandir com elle.\nOs criados do bispo, quando no come\u00e7o viram que os deitavam f\u00f3ra, e isso\nmesmo os outros todos, e que nenhum n\u00e3o ousava l\u00e1 de ir, pelo que sabiam\nque o bispo fazia, d\u00eas ahi juntando a isto a condi\u00e7\u00e3o de el-rei e a\nmaneira que em taes feitos tinha, logo suspeitaram que el-rei lhe queria\njogar de algum mau jogo, e foram-se \u00e1 pressa ao conde velho, e ao mestre\nde Christo Dom Nuno Freire, e a outros privados de seu conselho, que\naccorressem asinha ao bispo.\nE logo tostemente vieram a el-rei, e n\u00e3o ousaram de entrar na camara,\npor a defeza que el-rei tinha posta, se n\u00e3o f\u00f4ra Gon\u00e7alo Vasques de\nGoes, seu escriv\u00e3o da puridade, que disse que queria entrar por lhe\nmostrar cartas que sobrevieram de el-rei de Castella a gram pressa. E\npor tal azo e fingimento houveram entrada dentro na camara, e acharam\nel-rei com o bispo em ras\u00f5es, da guisa que havemos dito, e n\u00e3o lh'o\npodiam j\u00e1 tirar das m\u00e3os. E come\u00e7aram de dizer que fosse sua merc\u00ea de\nn\u00e3o p\u00f4r m\u00e3o n'elle, c\u00e1 por tal feito, n\u00e3o lhe guardando sua jurisdic\u00e7\u00e3o,\nhaveria o papa sanha d'elle; demais, que o seu povo lhe chamava algoz,\nque por seu corpo justi\u00e7ava os homens, o que n\u00e3o convinha a elle de\nfazer, por muito malfeitores que fossem.\nCom estas e outras ras\u00f5es, arrefeceu el-rei de sua mui brava sanha, e o\nbispo se partiu de ante elle, com semblante triste e turvado cora\u00e7\u00e3o.\n*CAPITULO VIII*\n_Como el-rei mandou capar um seu escudeiro, porque dormiu com uma mulher\ncasada_.\nEra ainda el-rei Dom Pedro muito cioso, assim de mulheres de sua casa,\ncomo de seus officiaes e das outras todas do povo, e fazia grandes\njusti\u00e7as em quaesquer que dormiam com mulheres casadas ou virgens, e\nisso mesmo com freiras.\nOnde aqueeceu que em sua casa havia um corregedor da c\u00f4rte a que\nchamavam Louren\u00e7o Gon\u00e7alves, homem mui entendido e bem razoado cumpridor\nde todas as cousas que lhe el-rei mandava fazer, e n\u00e3o corrompido por\nnenhuns falsos offerecimentos que trasmudam os juizos dos homens. E\nporque o el-rei achava leal e bem verdadeiro, fiava d'elle muito, e\nqueria-lhe grande bem.\nE era este corregedor muito honrado de sua casa e estado, e muito\npraceiro e de boa conversa\u00e7\u00e3o, e seria ent\u00e3o em meia idade. Sua mulher\nhavia nome Catharina Tosse, briosa, lou\u00e7\u00e3 e muito aposta, de graciosas\nmanhas e bem acostumada.\nEm esta ses\u00e3o vivia com el-rei um bom escudeiro, e para muito, mancebo,\ne homem de prole, e n'aquelle tempo estremado em assignadas bondades,\ngrande justador e cavalgador, grande monteiro e ca\u00e7ador, luctador e\ntravador de grandes ligeirices, e de todas as manhas que se a bons\nhomens requerem,--chamado por nome Affonso Madeira,--por a qual ras\u00e3o o\nel-rei amava muito e lhe fazia bem gradas merc\u00eas.\nEste escudeiro se veiu a namorar de Catharina Tosse, e mal cuidados os\nperigos que lhe advir podiam de tal feito, t\u00e3o ardentemente se lan\u00e7ou a\nlhe querer bem, que n\u00e3o podia perder d'ella vista e desejo: assim era\ntraspassado do seu amor. Mas, porque lugar e tempo n\u00e3o concorriam para\nlhe fallar como elle queria, e por ter aso de a requerer ameude de seus\ndeshonestos amores, firmou com o aposentador t\u00e3o grande amisade que para\nonde quer que el-rei partia, ora fosse villa ou qualquer aldeia, sempre\nAffonso Madeira havia de ser aposentado junto, ou muito perto do\ncorregedor. E havia j\u00e1 tempo que durava este aposentamento, sempre cerca\num do outro; tendo bom geito e conversa\u00e7\u00e3o com seu marido, por carecer\nde toda suspeita.\nAffonso Madeira tangia e cantava, af\u00f3ra sua apostura e manhas boas j\u00e1\nrecontadas, de guisa que por aso de tal achegamento, com longa affei\u00e7\u00e3o\ne falas ameude, se gerou entre elles tal fructo, que veiu elle a\nacabamento de seus prolongados desejos.\nE porque semelhante feito n\u00e3o \u00e9 da gera\u00e7\u00e3o das cousas que se muito\nencobram, houve el-rei de saber parte de toda sua fazenda, e n\u00e3o houve\nd'ello menos sentido que se ella fora sua mulher ou filha. E como quer\nque o el-rei muito amasse, mais que se deve aqui de dizer, posta de\nparte toda bemqueren\u00e7a, mandou-o tomar dentro em sua camara, e\nmandou-lhe cortar aquelles membros que os homens em m\u00f3r pre\u00e7o tem: de\nguisa que n\u00e3o ficou carne at\u00e9 aos ossos, que tudo n\u00e3o fosse corto. E\npensaram Affonso Madeira, e guareceu, e engrossou em pernas e corpo, e\nviveu alguns annos engelhado do rosto e sem barbas, e morreu depois de\nsua natural morte.\n*CAPITULO IX*\n_Como el-rei mandou queimar a mulher de Affonso Andr\u00e9, e de outras\njusti\u00e7as que mandou fazer_.\nQuem ouviu semelhante justi\u00e7a, do que el-rei fez na mulher de Affonso\nAndr\u00e9, mercador honrado, morador em Lisboa, andando justando na rua\nnova, como era costume, quando os reis vinham \u00e1s cidades, que os\nmercadores e cidad\u00e3os justavam com os da c\u00f4rte, por festa?\nEstando el-rei presente, e havendo informa\u00e7\u00e3o certa que sua mulher lhe\nfazia maldade, entendeu que ent\u00e3o era tempo de a achar e tomar em tal\nobra; e, por inculcas, muito escusamente foi ella tomada com quem a\nculpavam, e mandou-a queimar, e degolar a elle. E o marido, continuando\na justa, quando cessou, soube d'isto parte, e foi-se a el-rei por se\nqueixar do que lhe feito haviam. E el-rei, como o viu, antes que lhe\nelle fallasse, pediu-lhe a alvi\u00e7ara do que mandara fazer, dizendo que j\u00e1\no tinha vingado da aleivosa de sua mulher e do que lhe punha as cornas,\ne que melhor sabia elle quem ella era, que elle.\nQue diremos de Maria Roussada, mulher casada com seu marido, que dormira\ncom ella por for\u00e7a (a que ent\u00e3o chamavam roussar), por a qual cousa elle\nmerecia morte? E tendo j\u00e1 d'ella filhos e filhas, viviam ambos em gram\nbemqueren\u00e7a, e ouvindo-a el-rei chamar por tal nome, perguntou por que\nlh'o chamavam, e soube da guisa como tudo f\u00f4ra, e que se avieram que\ncasassem ambos por tal feito n\u00e3o vir mais \u00e1 pra\u00e7a: e el-rei, por cumprir\njusti\u00e7a, mandou-o enforcar, e ia a mulher e os filhos carpindo traz\nelle.\nN\u00e3o valeu, estando el-rei em Braga, rogo de quantos com elle andavam,\nque pudesse escapar a vida a Alvaro Rodrigues de Grade, um dos bons\nescudeiros de entre Douro e Minho, e bem aparentado, porque cortou os\narcos de uma cuba de vinho a um pobre lavrador, que lhe logo el-rei n\u00e3o\nmandou cortar a cabe\u00e7a, tanto que o soube.\nE porque o seu escriv\u00e3o do thesouro recebeu onze libras e meia sem o\nthesoureiro, mandou-o enforcar, que lhe n\u00e3o poude valer o conde, nem\nBeatriz Dias, manceba d'el-rei, nem outro nenhum.\nE foram aquelle dia, com estes dois, onze mortos por justi\u00e7a, entre\nladroes e malfeitores.\nN\u00e3o fique por dizer de um bom escudeiro, sobrinho de Jo\u00e3o Lourenco\nBubal, privado d'el-rei e do seu conselho, alcaide m\u00f3r de Lisboa, o qual\nescudeiro vivia em Aviz, honradamente e bem acompanhado. E foi a sua\ncasa, por mandado do juiz, um porteiro, para o penhorar, e elle, por\ncumprir vontade, depenou-lhe a barba e deu-lhe uma punhada.\nO porteiro veiu-se a Abrantes, onde el-rei estava, e contou-lhe tudo\ncomo lhe adviera. El-rei, que o \u00e1parte ouvia, como acabou de falar,\ncome\u00e7ou de dizer contra o corregedor que ahi estava:\n--Accorrei-me aqui, Louren\u00e7o Gon\u00e7alves, c\u00e1 um homem me deu uma punhada\nno rosto, e me depennou a barba! O corregedor, e os que o ouviram,\nficaram espantados por que o dizia. E mandou \u00e1 pressa que lh'o\ntrouxessem preso, e n\u00e3o lhe valesse nenhuma egreja. E foi assim feito, e\ntrouxeram-lh'o a Abrantes, e alli o mandou degolar, e disse:--D\u00eas que me\neste homem deu uma punhada e me depennou a barba, sempre me temi d'elle\nque me d\u00e9sse uma cutelada, mas j\u00e1 agora sou seguro que nunca m'a dar\u00e1!\nAssim, que bem podem dizer d'este rei Dom Pedro, que n\u00e3o sa\u00edram em seu\ntempo certos os ditos de Solon, philosopho, e d'outros alguns, os quaes\ndisseram que as leis e justi\u00e7a eram taes como a teia da aranha, na qual\nos mosquitos pequenos, caindo, s\u00e3o retidos e morrem n'ella, e as moscas\ngrandes e que s\u00e3o mais rijas, jazendo n'ella, rompem-n'a e v\u00e3o-se: e\nassim diziam elles que as leis e justi\u00e7a se n\u00e3o cumpriam sen\u00e3o nos\npobres, mas os outros que tinham ajuda e accorro, caindo n'ella, rompiam\nn'a e escapavam.\nEl-rei Dom Pedro era muito pelo contrario, c\u00e1 nenhum, por rogo nem\npoderio, havia de escapar da pena merecida; de guisa que todos receiavam\nde passar seu mandado.\n*CAPITULO X*\n_Como el-rei mandava matar o almirante; e da carta que lhe enviou o\nduque e commum de Genova, rogando por elle_.\nEl-Rei Dom Pedro queria gram mal a alcoviteiras e feiticeiras, de guisa\nque por as justi\u00e7as que n'ellas fazia, mui poucas usavam de taes\nofficios.\nE sendo elle na Beira, soube que uma, chamada por nome Helena,\nalcovitara ao almirante uma mulher, com que elle dormira, a que diziam\nViolante Vasques. E mandou logo el-rei queimar a alcoviteira, e ao\nalmirante, Lan\u00e7arote Pessanho, mandava cortar a cabe\u00e7a.\nE pero os do seu conselho trabalhassem muito por o livrar de sua sanha,\nnunca o puderam com elle postar, emtanto que o almirante fugiu, e foi\namorado, e partiu d'elle por longos tempos, perdidas suas contias e todo\nseu bem fazer e officio. E n\u00e3o sabendo remedio que sobre isto ter, houve\naccordo de mandar pedir ao duque e commum de Genova que escrevessem por\nelle a el rei, que fosse sua merc\u00ea de lhe perdoar.\nOs genovezes, vendo o recado do almirante, escreveram a el-rei que\nperdesse d'elle sanha, e a carta de Gabriel Adorno, duque de Genova, e\ndos anci\u00e3os do conselho d'essa cidade, dizia n'esta guisa:\n\u00abPrincipe e senhor mui claro, de grande e real magestade. Esguardada a\nbenignidade, muitas vezes se temp\u00e9ra por mansid\u00e3o o modo e rigor da\njusti\u00e7a, e a piedosa considera\u00e7\u00e3o trabalha sempre de renovar as boas\namisades antigas. E se boa cousa \u00e9 tomar amisades e novas conhecen\u00e7as,\nmuito melhor \u00e9, segundo diz o sabedor, renovar e conservar as velhas,\ndizendo que o amigo novo n\u00e3o \u00e9 egual nem semelhante ao de longo tempo.\nAs quaes raz\u00f5es nos fazem haver fiusa na vossa grande alteza, que\ngraciosamente haja de ouvir nossa humildosa supplicac\u00e3o, a qual \u00e9 esta,\nque a n\u00f3s foi notificado como o nobre cavalleiro Dom Lan\u00e7arote Pessanho,\nvosso almirante, filho em outro tempo do nobre bar\u00e3o Dom Manuel\nPessanho, digno de boa memoria, nosso amigo e cidad\u00e3o, haja caido em\nsanha da vossa real magestade, mais por inveja de alguns que d'elle bem\nn\u00e3o disseram, que por outras graves maldades que n'elle sejam achadas,\nsegundo corre a commum fama que por raz\u00e3o bem parece; c\u00e1 n\u00e3o \u00e9 de querer\nque saia de regra de bons feitos quem \u00e9 gerado e descende de padres que\nsempre foram ennobrecidos por virtuosos e bons costumes. E posto que\nerrasse em alguma cousa, muito deve vossa discreta mansid\u00e3o temperar o\nrigor da justi\u00e7a, renovando por nobres beneficios a lealdade dos seus\nantecessores: a qual cousa n\u00f3s esperando da vossa grande alteza, a ella\nhumildosamente pedimos que, pelo que dito \u00e9, e nossos afincados rogos,\ntenhaes por bem tornar o dito almirante \u00e1 gra\u00e7a primeira de seu bom\nestado. E por isto vossa real magestade haver\u00e1 n\u00f3s e nosso commum\napparelhados, de ledo cora\u00e7\u00e3o, a todas as cousas que lhe forem\npraziveis. Data, etc.\u00bb\nN\u00e3o embargando esta carta, n\u00e3o podiam com el-rei que perdesse sanha do\nalmirante; por\u00e9m depois a alguns tempos, lhe perdoou el-rei, e foi\ntornado a sua merc\u00ea.\n*CAPITULO XI*\n_Das moedas que el-rei Dom Pedro fez, e da valia do oiro e da prata\nn'aquelle tempo_.\nN\u00e3o se podem t\u00e3o temperadamente dizer os louvoures de alguma pessoa, que\naquelles, cujas linguas sempre t\u00eam costume de reprehender, n\u00e3o achem\nlugares a elles dispostos, em que ameude bem possam prasmar: e n\u00f3s,\nporque dissemos d'este rei Dom Pedro que era grado e l\u00eado em dar, e n\u00e3o\ndizemos de algumas grandezas que dignas sejam de tanto louvor, poder\u00e1\nser que nos prasmaram alguns, dizendo que n\u00e3o historiamos direitamente.\nE isto n\u00e3o \u00e9 por n\u00f3s bem n\u00e3o vermos que para autoridade de t\u00e3o grande\ngabo n\u00e3o se acham ditos em sua igualdan\u00e7a; mas, por n\u00e3o desviar\nd'aquelles louvores que os antigos em suas obras encommendaram,\ncontamol-o da guisa que o elles disseram.\nBem achamos que nunca se anojava por lhe pedirem, e que mandava lavrar\nat\u00e9 cem marcos de prata, em ta\u00e7as e copas, para dar em janeiras, e\ndava-as cada anno, com outras joias, a quem lhe prazia.\nAccrescentou nas contias aos fidalgos e vassalos, como dissemos; c\u00e1 o\nvassallo n\u00e3o havia antes de sua contia mais de setenta e cinco libras, e\nel-rei Dom Pedro lhe poz cento, que eram quinze dobras cruzadas, dobras\nmouriscas. E por esta contia havia de ter o vassalo cavallo recebondo e\nloriga com seu almofre, e \u00e1 sua morte ficava o cavallo e loriga a\nel-rei, de luctuosa, e dava-o el-rei a quem sua merc\u00ea era: em guisa que\ncom aquelle cavallo e armas, posta contia a outro vassalo, ficava sempre\no conto dos vassalos certo, e n\u00e3o minguado.\nNo tempo d'este rei, valia o marco da prata de liga dezenove libras, e a\ndobra mourisca tres libras e quinze soldos, e o escudo tres libras e\ndezesete soldos, e o mout\u00e3o tres libras e dezenove soldos.\nEste rei Dom Pedro n\u00e3o mudou moeda por cubi\u00e7a de temporal ganho; mas\nlavrou-se em seu tempo mui nobre moeda de oiro e prata sem outra\nmistura, a saber, dobras de bom oiro fino, de tamanho peso como as\ndobras cruzadas que faziam em Sevilha, que chamavam de Dona Branca. E\nestas dobras que el-rei Dom Pedro mandava lavrar, cincoenta d'ellas\nfaziam um marco: e d'outras que lavravam, mais pequenas, levava o marco,\ncento; e de uma parte tinham quinas e da outra figura de homem com\nbarbas nas faces e cor\u00f4a na cabe\u00e7a, assentado em uma cadeira, com uma\nespada na m\u00e3o direita, e havia letras ao redor, por latim, que em\nlinguagem diziam: _Pedro, rei de Portugal e do Algarve_, e da outra\nparte: _Deus, ajuda-me e faze-me excellente vencedor sobre meus\ninimigos_. E a maior dobra d'estas valia quatro libras e dois soldos, e\na mais pequena quarenta e um soldo.\nLavravam outra moeda de prata, que chamavam tornezes, que sessenta e\ncinco faziam um marco, de liga e peso dos reaes d'el-rei Dom Pedro de\nCastella, e outro tornez faziam, mais pequeno, de que o marco levava\ncento e trinta, e de um cabo tinha quinas, e do outro cabe\u00e7a de homem\ncom barbas grandes e cor\u00f4a n'ella, e as letras, de ambas as partes, eram\ntaes como as das dobras, e valia o tornez grande sete soldos e o pequeno\ntres soldos e meio, e chamavam a estas moedas dobra e meia dobra, e\ntornez e meio tornez.\nA outra moeda miuda eram dinheiros affonsins, da liga e valor que fizera\nel-rei Dom Affonso seu padre.\nE com estas moedas era o reino rico e abastado, e posto em grande\nabundancia. E os reis faziam grandes thesouros do que lhes sobejava de\nsuas rendas, e, para os fazer e accrescentar n'elles, tinham esta\nmaneira.\n*CAPITULO XII*\n_Da maneira que os reis tinham para fazer thesouros, e accrescentar\nn'elles_.\nJ\u00e1 v\u00f3s ouvistes bem quanto os r\u00e9is antigos fizeram por encurtar nas\ndespezas suas e do reino, pondo ordena\u00e7\u00f5es em si e nos seus, por terem\nthesouros e serem abastados. Porque sendo o povo rico, diziam elles que\no rei era rico, e o rei que thesouro tinha, sempre era prestes para\ndefender seu reino e fazer guerra quando lhe cumprisse, sem aggravo e\ndamno de seu povo, dizendo que nenhum era t\u00e3o seguro de paz que pudesse\ncarecer de fortuna n\u00e3o esperada.\nE para encaminharem de fazer thesouro, tinham todos esta maneira: em\ncada um anno eram os reis certificados, pelos v\u00e9dores de sua fazenda,\ndas despezas todas que feitas haviam, assim em embaixadas como em todas\nas outras coisas, que lhe necessariamente convinham fazer, e diziam-lhe\no que al\u00e9m d'isto sobejava de suas rendas e direitos, assim em dinheiros\ncomo em quaesquer coisas, e logo era ordenado que se comprasse d'elles\ncerto oiro e prata para se p\u00f4r no castello de Lisboa, em uma torre, que\npara isto f\u00f4ra feita, que chamavam a torre albarr\u00e3.\nEsta torre era mui forte, e n\u00e3o foi por\u00e9m acabada. Estava em cima da\nporta do castelo, e alli punham o mais do thesouro que os reis juntavam\nem oiro e prata e moedas, e tinham as chaves d'ella, um guardi\u00e3o de S\u00e3o\nFrancisco, e outra o prior de S\u00e3o Domingos, e a terceira um beneficiado\nda S\u00e9 d'essa cidade.\nE para juntarem este oiro e prata, tinham este modo: em todas as cidades\ne villas do reino que para isto eram azadas, tinham os reis seus\ncambadores, que compravam prata e oiro \u00e1quelles que o vender queriam, o\nqual n\u00e3o havia de comprar outrem sen\u00e3o elles, e acabado o anno, trazia\ncada um quanto comprara \u00e1quelles lugares onde havia de ser posto em\nthesouro: e haviam estes cambadores certa cousa de cada pe\u00e7a de oiro que\ncompravam, e o que sobejava em moeda punham-no isso mesmo em deposito.\nOutra torre havia no castello de Santarem, em que outrosim estava mui\ngran thesouro de moeda e d'outras cousas, em tamanha quantidade, que\nante a pontavam fortemente por n\u00e3o cair com o muito haver que n'ella\npunham.\nE d'esta guisa estava no Porto, e em Coimbra, e n'outros lugares.\nE posto alli, em cada um anno aquelle oiro, e prata, e moedas que assim\nficavam, e que os reis mandavam comprar, quando o rei vinha a morrer, e\npr\u00e9gavam d'elle e dos bens que fizera, dizendo como o reinara tantos\nannos e mantivera em direito e justi\u00e7a, contavam-lhe mais por grande\nbondade, e louvando-o muito, diziam:--este rei, em tantos annos que\nreinou, poz nas torres do thesouro tanto oiro, e prata, e moedas. E\nquanto cada um rei n'ellas punha, tanto lh'o contavam por muito m\u00f3r\nbondade.\nEl-rei Dom Pedro, como reinou, pareceu a alguns que n\u00e3o tinha sentido de\nordenar que accrescentassem no thesouro, que os antigos com grande\ncuidado come\u00e7aram de guardar. E vendo isto um seu privado, que chamavam\nJo\u00e3o Esteves, houve-o por grande mal, e propoz de lh'o dizer, e fallando\nel-rei com elle uma vez, em coisas de sabor, disse elle a el-rei em esta\nguisa:--Senhor, a mim parece, se vossa merc\u00ea fosse, que seria bem de\nproverdes vossa fazenda, e v\u00ear o que se dispender p\u00f3de, e, do que\nsobejar, encaminhardes como accrescenteis alguma cousa nos thesouros que\nvos ficaram de vosso padre e de vossos av\u00f3s, para fazerdes o que os\noutros reis fizeram, e para terdes que dispender mais abundosamente se\nvos alguma necessidade viesse \u00e1 m\u00e3o, c\u00e1 muito mais com vossa honra\ndispendereis v\u00f3s accrescentando no thesouro que tendes, que gastar o que\nos outros reis deixaram, sem p\u00f4r n'elle nenhuma coisa.\nA estas e outras raz\u00f5es respondeu el-rei que dizia bem, e que lhe\npuzesse em escripto quanto era o que renderiam seus direitos, e a\ndespeza que se d'ello fazia. A poucos dias trouxe o privado, em\nescripto, tudo aquillo que lhe el-rei dissera, e visto por ambos\napartadamente, acharam que tiradas as despezas que os reis em costume\ntinham de fazer, que s\u00f3mente no seu thesouro de Lisboa podia cada anno\np\u00f4r na torre do castello at\u00e9 quinze mil dobras.\nE ordenou logo, como se puzesse cada anno, em oiro, e prata, e moedas,\ntudo o que sobejasse de suas rendas, nos lugares acostumados onde os\nreis punham seu haver; por\u00e9m que dizia el-rei que n\u00e3o fazia pouco quem\nguardava o thesouro que lhe ficava de outrem e se mantinha nos direitos\nque havia de seu reino, sem fazendo aggravo ao povo, nem lhe tomando do\nseu nenhuma coisa. E ficaram todos por sua morte a el-rei Dom Fernando,\nseu filho, que os depois gastou como lhe prouve, segundo adiante\nouvireis.\n*CAPITULO XIII*\n_Por que guisa el-rei Dom Pedro de Castella come\u00e7ou de juntar thesouro_.\nPor outra maneira juntou el-rei Dom Pedro de Castella mui gr\u00e3o thesouro,\nsem mudar moeda, nem lan\u00e7ar peitas ao povo: e v\u00eade de que guisa foi,\nposto que fallemos dos feitos alheios.\nAssim, adverti que el-rei Dom Pedro estando na aldeia de Morales, que \u00e9\numa legua de Toro, jogava um dia os dados com alguns de seus\ncavalleiros, e tinha-lhe um seu reposteiro-m\u00f3r, a cerca d'elle, uns\nhuchotes pequenos com alguma prata e dobras, que seria por todo at\u00e9\nvinte mil: el-rei disse que aquelle era todo seu thesouro, e que mais\nn\u00e3o tinha.\nAquelle dia, logo \u00e1 noite, estando el-rei em sua camara, Dom Samuel\nLevi, seu thesoureiro-m\u00f3r, lhe disse:--Senhor, hoje foi vossa merc\u00ea\ndizer, perante aquelles que aqui estavam, que v\u00f3s n\u00e3o tinheis mais\nthesouro que vinte mil dobras, de que jogaveis, e com que tomaveis\nsabor. E isto, senhor, entendo que o dissestes contra mim, por me\navergonhar, pois que sou vosso thesoureiro-m\u00f3r, e n\u00e3o ponho melhor\nrecado em vossa fazenda. Por\u00e9m, senhor, v\u00f3s sabeis bem que, posto que\nfosse eu vosso thesoureiro depois que v\u00f3s reinastes at\u00e9 ora, que p\u00f3de\nhaver uns sete annos, sempre em vosso reino houve taes boli\u00e7os por os\nquaes os recadadores de vossas rendas se atreveram a fazer coisas que\nn\u00e3o deviam, por guisa que eu n\u00e3o pude tomar d'ello conta socegadamente\ncomo era raz\u00e3o; mas ora se vossa merc\u00ea f\u00f4r de me mandardes entregar dois\ncastellos, quaes eu disser, eu vos quero p\u00f4r n'elles, antes de muito\ntempo, thesouro com que bem possaes dizer que mais tendes juntas de\nvinte mil dobras.\nA el-rei prouve muito d'isto, e foram lhe entregues o alca\u00e7ar de\nTorjillo e o de Fita. Dom Samuel poz logo alli homens de que se fiava, e\nmandou cartas por todo o reino, a todos os que foram e eram recadadores\ndas rendas de el-rei, des que elle come\u00e7ara de reinar at\u00e9 ent\u00e3o, que\nviessem logo dar conta; e tomava-lh'a d'esta guisa. Por el-rei eram\nlivrados a um cavalleiro, ou outro qualquer, certos mil maravedis de seu\npoimento, ou d'outra maneira, e Dom Samuel fazia vir perante si todos\naquelles a que alguns dinheiros foram desembargados por aquelle a que\ntomava conta, e dava a cada um juramento, aos Evangelhos, quantos\ndinheiros receberam d'aquelle recadador por cada uma vez, e quantos lhe\ndeixara por haver d'elle desembargo e n\u00e3o ser detido, e aquelle a que\ntaes dinheiros foram livrados dizia que n\u00e3o houvera mais de tantos, e\nque os outros lhe d\u00e9ra, de peita, pelo desembargar, porque lhe faziam\nentender que d'outra guisa n\u00e3o poderia haver pagamento.\nEnt\u00e3o, se o recadador n\u00e3o mostrasse lugar certo onde lhe todo f\u00f4ra\npagado, mandava Dom Samuel que a metade de quanto assim levara fosse\npara o thesouro d'el-rei, e a metade para aquelle que recebera tal\nengano.\nE todos os que taes livramentos houveram, eram mui contentes de dizer a\nverdade, por cobrar o que tinham perdido. E elle juntou, por esta guisa,\nantes de um anno, n'aquelles castellos, t\u00e3o grande thesouro, que era\nestranha cousa de v\u00ear.\nE este foi o come\u00e7o do mui gr\u00e3o thesouro que el-rei Dom Pedro depois\nteve junto, segundo adiante contaremos.\n*CAPITULO XIV*\n_Como el-rei fez conde e armou cavalleiro Jo\u00e3o Affonso Tello, e da gr\u00e3o\nfesta que lhe fez_.\nEm tres coisas assignadamente achamos, pela m\u00f3r parte, que el-rei Dom\nPedro de Portugal gastava seu tempo, a saber: em fazer justi\u00e7a e\ndesembargos do reino, e em monte e ca\u00e7a de que era mui queren\u00e7oso, e em\ndan\u00e7as e festas segundo aquelle tempo, em que tomava grande sabor, que\nadur \u00e9 agora para ser crido. E estas dan\u00e7as era a som de umas longas que\nent\u00e3o usavam, sem curando de outro instrumento posto que o hi houvesse:\ne se alguma vez lh'o queriam tanger, logo se enfadava d'elle e dizia que\no dessem ao d\u00e9mo, e que lhe chamassem os trombeiros.\nOra deixemos os jogos e festas que el-rei ordenava por desenfadamento,\nnas quaes, de dia e de noite, andava dan\u00e7ando por mui grande espa\u00e7o; mas\nv\u00eade se era bem saboroso jogo. Vinha el-rei em bateis de Almada para\nLisboa, e saiam-no a receber os cidad\u00e3os, e todos os dos misteres, com\ndan\u00e7as e trebelhos, segundo ent\u00e3o usavam, e elle saia dos bateis, e\nmettia-se na dan\u00e7a com elles, e assim ia at\u00e9 ao pa\u00e7o.\nParaementes se foi bom sabor. Jazia el-rei em Lisboa uma noite na cama,\ne n\u00e3o lhe vinha somno para dormir, e fez levantar os mocos e quantos\ndormiam no pa\u00e7o, e mandou chamar Jo\u00e3o Matheus e Louren\u00e7o Palos, que\ntrouxessem as trombas de prata, e fez accender tochas, e metteu-se pela\nvilla em dan\u00e7a com os outros. As gentes que dormiam, saiam \u00e1s janellas,\na v\u00ear que festa era aquella, ou por que se fazia, e quando viram\nd'aquella guisa el-rei, tomaram prazer de o v\u00ear assim l\u00eado. E andou\nel-rei assim gr\u00e3o parte da noite, e tornou-se ao pa\u00e7o em dan\u00e7a, e pediu\nvinho e fructa, e lancou-se a dormir.\nE n\u00e3o curando mais falar de taes jogos: ordenou el-rei de fazer conde e\narmar cavalleiro Jo\u00e3o Affonso Tello, irm\u00e3o de Martim Affonso Tello, e\nfez-lhe a m\u00f3r honra, em sua festa, que at\u00e9 \u00e1quelle tempo fora visto que\nrei nenhum fizesse a semelhante pessoa; c\u00e1 el-rei mandou lavrar\nseiscentas arrobas de c\u00eara, de que fizeram cinco mil cirios e tochas, e\nvieram de termo de Lisboa, onde el-rei ent\u00e3o estava, cinco mil homens\ndas vintenas para terem os ditos cirios. E quando o conde houve de velar\nsuas armas, no mosteiro de S\u00e3o Domingos d'essa cidade, ordenou el-rei\nque d\u00eas aquelle mosteiro at\u00e9 aos seus pa\u00e7os, que \u00e9 assaz grande espa\u00e7o,\nestivessem quedos aquelles homens todos, cada um com seu cirio accesso,\nque davam todos mui grande lume, e el-rei, com muitos fidalgos e\ncavalleiros, andavam por entre elles dan\u00e7ando e tomando sabor, e assim\ndispenderam gr\u00e3o parte da noite.\nEm outro dia, estavam mui grandes tendas armadas no rocio, a cerca\nd'aquelle mosteiro, em que havia grandes montes de p\u00e3o cosido, e, ass\u00e1z\nde tinas cheias de vinho, e logo prestes por que bebessem, e f\u00f2ra\nestavam ao fogo vaccas inteiras em espetos a assar, e quantos comer\nqueriam d'aquella vianda, tinham-na muito prestes, e a nenhum n\u00e3o era\nvedada. E assim estiveram sempre em quanto durou a festa, na qual foram\narmados outros cavalleiros, cujos nomes n\u00e3o curamos dizer.\n*CAPITULO XV*\n_Das aven\u00e7as que el-rei de Castella e el-rei Dom Pedro de Portugal\nfirmaram entre si, e como lhe el-rei de Portugal prometteu de fazer\najuda contra Arag\u00e3o_.\nEscrevem alguns louvando este rei Dom Pedro, dizendo que reinou em paz\nem quanto viveu, e fortuna n\u00e3o fez sem-raz\u00e3o de encaminhar o come\u00e7o, e\nmeio, e fim de seu mando, de viver em socego e folgada paz; c\u00e1 elle, por\nmorte de el-rei seu padre, achou o reino sem nenhuma briga por que\nhouvesse de haver contenda com nenhum rei da Espanha, nem de outra\nprovincia mais alongada.\nD\u00eas ahi, como elle reinou, mandou logo Ayres Gomes da Silva e Gon\u00e7alo\nAnnes de Beja, a el-rei de Castella, seu sobrinho, com recado, e de\nCastella veiu a elle, da parte de el-rei Dom Pedro, um cavalleiro, que\nchamavam Fern\u00e3o Lopez de Estu\u00f1ega. E tratou-se ent\u00e3o, entre os reis, que\nfossem ambos verdadeiros e leaes amigos, e firmaram d'aquella vez suas\namisades.\nDepois d'isto, a cabo de um anno, estando el-rei Dom Pedro em Evora,\nchegaram mensageiros de el-rei de Castella, a saber, Dom Samuel Levi,\nseu thesoureiro-m\u00f3r, e Garcia Guterrez Tello, alguazil m\u00f3r de Sevilha, e\nGomes Fernandez de Soria, seu alcaide, e trataram, entre os reis ambos,\nmuito mais perfeitas amisades que antes. E foi mais ordenado, entre\nelles, que o infante Dom Fernando, seu primogenito filho, e herdeiro em\nPortugal, casasse com Dona Beatriz, filha do dito rei de Castella, e que\nse fizessem os desposorios, por seus procuradores, d\u00eas fevereiro meiado\nseguinte at\u00e9 ao primeiro dia de mar\u00e7o que vinha, e as bodas logo no\npostumeiro dia de abril, e que el-rei de Castella desse \u00e1 dita sua\nfilha, em casamento, outro tanto haver quanto el-rei Dom Affonso de\nPortugal dera, com sua filha Dona Maria, a el-rei Dom Affonso seu padre,\ne que el-rei de Portugal desse \u00e1 dita Dona Beatriz, em arrhas e doa\u00e7\u00e3o,\noutro tanto quanto seu padre, el-rei Dom Affonso, d\u00e9ra a Dona Constan\u00e7a,\nquando com elle cas\u00e1ra, e mais, que casasse Dona Constan\u00e7a, filha do\ndito rei Dom Pedro de Castella, com o infante Dom Jo\u00e3o, e a outra filha,\nque chamavam Dona Izabel, casasse com o infante Dom Diniz, e que os\ndesposorios e casamentos d'estes fossem acabados d'ahi a seis annos, e\nque el-rei de Castella desse taes lugares a cada uma d'ellas, de que\nhouvessem de renda noventa mil maravedis, e el-rei de Portugal, a cada\num dos infantes, lugares que lhe rendessem cada anno dez mil libras de\nportuguezes; e que el-rei de Castella fosse seu amigo, e imigo de imigo,\ne que se ajudassem um ao outro por mar e por terra, cada vez que\nrequerido fosse, e que el-rei de Castella n\u00e3o fizesse paz com el-rei de\nArag\u00e3o, contra quem lhe elle ent\u00e3o requeria ajuda, sem lh'o fazer saber\nprimeiro, nem com outro nenhum rei e senhor.\nOnde sabei, que esta ajuda, que el rei de Castella ent\u00e3o pediu a el-rei\nDom Pedro de Portugal, f\u00f4ra j\u00e1 antes pedida por elle a el-rei Dom\nAffonso, seu padre, quando este rei Dom Pedro de Castella come\u00e7ou a\nguerra contra el-rei Dom Pedro de Arag\u00e3o, que foi no postumeiro anno do\nreinado do dito rei Dom Affonso, segundo adiante vereis; a qual ajuda\nhavia de ser gentes de cavallo por terra, e certas gal\u00e9s pelo mar.\nEl-rei Dom Affonso respondeu a seu neto, que elle sabia bem e era certo\ndas posturas e firmid\u00f5es que foram feitas entre el-rei Dom Diniz, seu\npadre, e el-rei Dom Fernando, seu av\u00f3, e el-rei Dom Jayme de Arag\u00e3o, as\nquaes todos tres firmaram por si e por todos seus successores, e havido\naccordo com todos os bons da casa de Portugal, que para ello foram\njuntos em conselho, achou el-rei Dom Affonso que lhe n\u00e3o podia fazer a\ndita ajuda, com aguisada raz\u00e3o: e vista tal resposta por el rei de\nCastella, cessou de lh'a mais requerer.\nMorto el-rei Dom Affonso de Portugal, e come\u00e7ando de reinar este rei Dom\nPedro, seu filho, enviou-lhe o dito rei de Castella rogar que lhe\nquizesse fazer ajuda por mar e por terra em aquella guerra que ent\u00e3o\nhavia contra el-rei de Arag\u00e3o; c\u00e1 isso mesmo tinha elle em vontade de\nfazer a elle quando lhe cumpridoiro fosse.\nEl-rei de Portugal respondeu a isto, que bem certo devia elle de ser dos\nbons e grandes dividos que sempre houvera entre os reis de Portugal e de\nArag\u00e3o, pelos quaes elle com raz\u00e3o aguisada poderia ser bem escusado de\nfazer nem dizer cousa que a elle e a sua terra fosse prejuizo, m\u00f3rmente,\nque entre el-rei Dom Affonso, seu padre, e el-rei Dom Pedro de Arag\u00e3o,\nque ent\u00e3o era, foram firmadas posturas e amisades para se amarem e\najudarem, especialmente contra el-rei Dom Affonso, padre d'elle rei de\nCastella, e que isso mesmo f\u00f4ra j\u00e1 a elle tratado, por vezes, depois que\nentre elles recrescera aquella discordia; mas, que n\u00e3o embargando estas\nras\u00f5es todas, que entendia que entre elles ambos havia tantos e t\u00e3o bons\ndividos, e assim aguisadas ras\u00f5es, por que cada um d'elles devia fazer,\npor honra e prol do outro, toda coisa que pudesse, e que elle assim o\nentendia de fazer, tambem em aquelle mister que ent\u00e3o havia, como em\ntodos os outros. E que para accrescentar na amisade e dividos que ambos\nhaviam, que lhe prazia de o ajudar n'aquella guerra, que come\u00e7ada tinha,\nmas porquanto, a Deus gra\u00e7as, elle era abastante de muitas gentes, muito\nmais que el-rei de Arag\u00e3o, e parte de suas gal\u00e9s eram perdidas, que\nmelhor podia escusar a ajuda por terra que a do mar: e como quer que lhe\nesta mais custosa fosse, que lhe prazia de o ajudar com dez gal\u00e9s\ngrossas, pagas por trez mezes, as quaes lhe faria bem prestes quando\nlh'as mandasse requerer.\nE foi assim de feito, que lhe fez ajuda por mar duas vezes, e duas por\nterra, de bons cavalleiros e bem corregidos, durando por longos tempos\ngrande guerra, e muito crua, entre el-rei Dom Pedro de Castella e el-rei\nDom Pedro de Arag\u00e3o.\nMas porque alguns, ouvindo aquisto, desejar\u00e3o saber que guerra foi esta,\nou porque se come\u00e7ou e durou tanto tempo, e n\u00f3s falar d'isto podiamos\nbem escusar, por taes coisas serem feitos de Castella e n\u00e3o de Portugal,\npero, n\u00e3o embargando isto, por satisfazer ao desejo d'estes, d\u00eas ahi\nporque nos parece que n\u00e3o havendo alguma noticia das crueldades e obras\nd'este rei Dom Pedro de Castella n\u00e3o podem bem vir em conhecimento, qual\nfoi a raz\u00e3o porque elle depois fugiu de seu reino e se vinha a Portugal\nbuscar ajuda e accorro, e como depois de sua morte muitos lugares de\nCastella se deram a el-rei Dom Fernando, e tomaram voz por elle: por\u00e9m\nfaremos de tudo um breve falamento, come\u00e7ando primeiro nas cousas que\nadvieram em come\u00e7o de seu reinado, vivendo ainda el-rei Dom Affonso de\nPortugal, seu av\u00f4, com as outras que se seguiram depois que reinou\nel-rei Dom Pedro, seu tio, das quaes nos parece que se em outro lugar\nmelhor contar n\u00e3o podem que todas aqui juntamente, entremettendo seus\nfeitos com a guerra, e primeiro, das cousas que fez antes que a\ncome\u00e7asse, por saberdes tudo, em certo, de que guisa foi.\n*CAPITULO XVI*\n_De algumas pessoas que el-rei D. Pedro de Castella mandou matar, e como\ncasou com a rainha Dona Branca e a deixou_.\nSegundo testemunho de alguns, que seus feitos d'este rei de Castella\nescreveram, elle foi muito cumpridor de toda cousa que lhe sua natural e\ndesordenada vontade requeria: em tanto que dizendo n\u00f3s, pelo miudo, tudo\no que feiamente se poderia ouvir de seus feitos, ca\u00edriamos em\nreprehens\u00e3o, que n\u00e3o eramos escasso de contar os males alheios, mormente\ntaes que s\u00e3o pregoeiros de m\u00e1 e vergonhosa fama, por\u00e9m muito menos\nd'aquelles que achamos escriptos, dos principaes diremos, e mais n\u00e3o.\nEste rei foi muito arredado das manhas e condi\u00e7\u00f5es que aos bons reis\ncumpre de haver, c\u00e1 elle dizem que foi mui luxurioso, de guisa que\nquaesquer mulheres que lhe bem pareciam, posto que filhas-d'algo e\nmulheres de cavalleiros fossem, e isso mesmo donas de ordem ou de outro\nestado que n\u00e3o guardava mais umas que outras. Era muito cubi\u00e7oso do\nalheio por m\u00e1 e desordenada maneira, e n\u00e3o queria homem em seu conselho,\nsalvo que lhe louvasse sua raz\u00e3o e quanto fazia. Matou muitas honradas\npessoas, d'ellas sem raz\u00e3o por lhe darem bom conselho, e outras sem\nporque, e por ligeiras suspeitas, em tanto que muitos bons se afastavam\nd'elle muito anojados, por temor da morte: c\u00e1 nenhum n\u00e3o era com elle\nseguro, posto que o bem servisse, e lhe elle muita merc\u00ea e honra\nfizesse. E deixados os achaques que a cada um punha por os matar,\ns\u00f3mente, em breve, das mortes digamos, e mais n\u00e3o.\nNo segundo anno de seu reinado foi morta D. Leonor Nunez de Gusman,\nmanceba que f\u00f4ra de el-rei seu padre, e madre do conde Dom Henrique, que\ndepois foi rei; e posto que alguns digam que foi por mandado da rainha\nDona Maria, sua madre, certo \u00e9 que ella n\u00e3o mandaria fazer tal cousa sem\nconsentimento de el-rei seu filho. E deu el-rei a sua madre todos os\nbens de Leonor Nunez.\nMandou el-rei matar Garcia Lasso da Veiga, um grande fidalgo de Gastella\ne muito aparentado de genros e parentes e amigos, por suspeita que\nd'elle houve.\nMandou matar tres homens bons da cidade de Burgos, a saber, Pero\nFernandez de Medina, e Jo\u00e3o Fernandez, escriv\u00e3o, e Affonso Garcia de\nCamargo.\nIdem, cercou Dom Affonso Fernandez Coronel, na villa de Aguilar, e\nentrou-o por for\u00e7a, e mandou-o matar, e Pero Coronel seu sobrinho, e\nJo\u00e3o Gon\u00e7alvez d'E\u00e7a, e Pero Dias de Quesada, e Rodrigo Annes de Beema,\ne Jo\u00e3o Affonso Carrilho, mui bom cavalleiro.\nMandou el-rei pedir a el-rei de Fran\u00e7a que lhe desse por mulher uma das\nfilhas do duque de Bourbon seu primo, e de seis filhas que elle tinha,\nescolheram os mensageiros uma, que chamavam Dona Branca, mo\u00e7a de 18\nannos e bem formosa, e receberam-na em seu nome. E como el-rei Dom Pedro\nisto soube, mandou que lh'a trouxessem logo, e enviou el-rei de Fran\u00e7a\ncom ella o visconde de Cardona e outros grandes cavalleiros de sua\nterra, que lh'a trouxeram mui honradamente; e deu-lhe com ella mui gr\u00e3o\ncasamento em oiro e prata e outras riquezas, e foram ent\u00e3o feitas as\ndobras que chamaram de Dona Branca, e os reaes de Castella de el-rei Dom\nPedro.\nE emquanto os mensageiros foram tratar este casamento, tomou elle por\nmanceba Maria de Padilha, que andava por donzella em casa de Dona Isabel\nde Menezes, filha de Dom Tello de Menezes, mulher de Dom Jo\u00e3o Affonso de\nAlbuquerque, que a criava. E tal vontade poz el-rei n'ella, que j\u00e1 n\u00e3o\ncurava de casar com Dona Branca quando veiu, tendo j\u00e1 da outra uma filha\nque chamavam Dona Beatriz.\nE por conselho de Dom Jo\u00e3o Affonso de Albuquerque, pero muito contra\nvontade d'el-rei, ordenou de fazer suas b\u00f4das em Valhadolid, e foram\nfeitas uma segunda feira. E logo \u00e1 ter\u00e7a seguinte, como el-rei comeu, a\ncabo de uma hora, deixou sua mulher, que n\u00e3o valeu rogo nem lagrimas da\nrainha Dona Maria sua madre, nem da rainha de Arag\u00e3o sua tia, que o\npudessem ter que se n\u00e3o partisse, e levou tal andar que foi essa noite\ndormir \u00e1 aldeia de Pajares, que s\u00e3o dezeseis leguas de Valhadolid, e em\noutro dia chegou a Montalban, onde estava Dona Maria de Padilha. E tinha\nel-rei, quando partiu, e alguns dos que com elle iam, mulas em certos\nlugares, pero n\u00e3o chegaram com elle mais de tres; e foi por isto grande\nalvoro\u00e7o entre os senhores e fidalgos do reino que alli eram, e alguns\nforam logo partidos d'el-rei.\nDepois, por afincado conselho, tornou el-rei a Valhadolid e esteve com\nsua mulher dois dias, e nunca mais puderam com elle que alli\nassocegasse; e partiu-se e nunca a mais quiz v\u00ear. E o visconde e\ncavalleiros, que com ella vieram, se partiram sem mais falar a el-rei.\nSendo viva esta rainha Dona Branca, n\u00e3o havendo mais de um anno que\nel-rei com ella casara, pareceu-lhe bem Dona Joanna de Castro, filha de\nDom Pedro de Castro, que chamaram da Guerra, mulher que f\u00f4ra de Dom\nD\u00efego de Alfaro, e commetteu-lhe por outrem que casasse com elle. E ella\nn\u00e3o querendo, porque el-rei era casado, disse elle que tinha raz\u00f5es por\nque o n\u00e3o era: e mandou aos bispos de Avila e de Salamanca que\npronunciassem que podia casar. E elles, com medo, disseram-no assim, e\nforam recebidos na villa de Qualhar, dentro na igreja, solemnemente,\npelo bispo de Salamanca que os recebeu ambos. Em o outro dia partiu\nel-rei d'alli, e nunca mais viu esta Dona Joanna: e ella chamou-se\nsempre rainha, pero n\u00e3o prazia a el-rei d'ello.\nA rainha Dona Maria tomou comsigo sua nora e foi-se para Outerdesilhas,\ne d\u00eas-ahi mandou-a el-rei levar guardada a Revollo, que a n\u00e3o visse sua\nmadre nem outro nenhum, e depois a teve presa em Medina-Sidonia e alli a\nmandou matar, sendo ent\u00e3o a rainha com idade de vinte e cinco annos,\nmuito sisuda e bem acostumada.\nE elle teve ordenado de mandar matar Alvaro Gon\u00e7alves Mour\u00e3o, e Dom\nAlvaro Perez de Castro, irm\u00e3o de Dona Ignez, madre de Dom Jo\u00e3o e de Dom\nDiniz, filhos de el-rei Dom Pedro de Portugal, sendo ent\u00e3o infante; e\nforam percebidos por Dona Maria de Padilha, que lh'o mandou dizer, e\nassim escaparam de morte.\nMandou matar em Medina del Campo, um dia pela festa, em seu pa\u00e7o, Pero\nRodriguez de Vilhegas, adiantado m\u00f3r de Castella, e Sancho Rodriguez de\nRojas; e foi morto um escudeiro de Pero Rodriguez.\nMandou matar, em Toledo, vinte e dois homens bons, do commum, porque\nforam em conselho de se al\u00e7ar a cidade de Toledo, por n\u00e3o matarem n'ella\na rainha Dona Branca, segundo todos d'aquella vez cuidaram, entre os\nquaes mandava matar um ourives velho de oitenta annos; e um seu filho de\ndezoito annos, tendo-o para o matar, disse a el-rei que lhe pedia por\nmerc\u00ea que antes mandasse matar a elle que seu padre, e el-rei mandou-o\nassim fazer: pero mais prouvera a todos que el-rei n\u00e3o mandara matar nem\num nem outro.\nE mandou matar quatro cavalleiros bons d'essa cidade, a saber, Gon\u00e7alo\nMendes, e Lopo de Vellasco, e Tello Gon\u00e7alves Palomeque, e Lopo\nRodrigues, seu irm\u00e3o.\nQuando entrou a villa de Toro, onde estava a rainha sua madre, saiu a\nrainha a elle, do alca\u00e7ar, por seu mandado, e mandou matar Dom Pero\nEsteves, que se chamava mestre de Calatrava, alli onde vinha junto com\nella, e Rui Gon\u00e7alves de Castanheda que a trazia de bra\u00e7o, e Affonso\nTelles Giron, e Martim Affonso Tello, todos quatro a redor da rainha. E\nella, quando os viu matar, t\u00e3o a cerca de si, caiu em terra como morta,\ne levantaram-na, bradando e maldizendo seu filho, e a poucos dias lhe\npediu que a mandasse a Portugal para el-rei seu padre, e assim o fez: e\nahi morreu depois, segundo tendes ouvido.\nMandou el-rei mais matar Gomes Manrique de Hornamella, e outros; e\nordenou um torneio em Outerdesilhas, de cincoenta por cincoenta, por\nmatar n'elle o mestre de S\u00e3o Thiago Dom Fradarique, seu irm\u00e3o, que era\nno torneio. E el-rei n\u00e3o quiz descobrir este segredo a outrem, e porem\nn\u00e3o se fez aquelle dia.\n*CAPITULO XVII*\n_Como se come\u00e7ou o desvairo entre el-rei Dom Pedro de Castella e o conde\nDom Henrique, seu irm\u00e3o, o qual foi aso porque se o conde foi f\u00f3ra do\nreino_.\nPois havemos de fazer men\u00e7\u00e3o, ao diante, da guerra e grande desvairo que\ndepois houve entre o conde Dom Henrique e el-rei Dom Pedro, seu irm\u00e3o,\nnecessario \u00e9 que contemos primeiro como se come\u00e7ou sua desaven\u00e7a e de\nque guisa se elle partiu do reino: e isto, antes que entremos na guerra\nde Castella com el-rei de Arag\u00e3o, em cuja ajuda elle depois veiu.\nOnde sabei que morto el-rei Dom Affonso sobre o cerco de Gibraltar, que\nfoi na era de mil e trezentos e oitenta e oito annos, no mez de mar\u00e7o, e\ntomando todos por seu rei o infante Dom Pedro seu primogenito filho,\nsendo ent\u00e3o em idade de quinze annos, e estando na cidade de\nSevilha,--partiram do arrayal com o corpo de el-rei, para o virem\nsoterrar a Castella, muitos dos senhores e fidalgos que eram alli com\nelle, assim como o infante Dom Fernando, filho de el-rei de Arag\u00e3o,\nmarquez de Tortosa, sobrinho do dito rei Dom Affonso, filho da rainha\nDona Leonor sua irm\u00e3, e Dom Henrique conde de Trastamara, e Dom\nFradarique mestre de S\u00e3o Thiago, seu irm\u00e3o, filhos de Leonor Nunez, e do\ndito rei Dom Affonso, e Dom Jo\u00e3o Affonso de Albuquerque, e outros\nsenhores, e mestres, e ricos-homens. E passando o corpo de el-rei\nperante a villa de Medina Sidonia, que era de Leonor Nunez, ella se foi\ndentro ao lugar; porquanto Affonso Fernandez Coronel, que a tinha por\nella, lhe disse que a n\u00e3o queria mais ter. E foi por esta entrada, que\nLeonor Nunez fez n'aquelle logar, mui grande murmurio entre os senhores\ne cavalleiros que levavam o corpo d'el-rei, cuidando que ella se punha\nalli em esfor\u00e7o dos filhos e parentes seus, que alli vinham.\nE Dom Jo\u00e3o Affonso de Albuquerque, quando viu aquella ficada que os\nfilhos e parentes de Leonor Nunez faziam com ella n'aquelle logar, que\nera bem forte, tratou com alguns que o conde Dom Henrique e Dom\nFradarique seu irm\u00e3o, estivessem n'aquella villa como presos. E soube-o\nLeonor Nunez, e tomou mui gr\u00e3o medo. E trataram com ella, segurando-a\nDom Jo\u00e3o Nunez de Lara que tinha sua filha esposada com Dom Tello, seu\nfilho d'ella, cuidando ella que tal seguran\u00e7a fosse firme.\nE saiu-se do logar ella e seus filhos, e Dom Pedro Ponce de Leon, e Dom\nFern\u00e3o Perez Ponce seu irm\u00e3o, mestre de Alcantara, e Dom Alvaro Perez de\nGuzman, e outros seus parentes, e houveram todos accordo de se apartar\nde el-rei, receando-se muito de irem a Sevilha, onde el-rei Dom Pedro\nestava, e serem presos. E logo n'esse dia que partiram de Medina, se\nforam a Moram, que \u00e9 uma villa e castello bem forte a cerca de terra de\nmouros, e n\u00e3o segurando ainda de estar alli, foram-se para Aljazira, que\ntinha Dom Pero Ponce, e Dom Fradarique se tornou para a terra da ordem\nde S\u00e3o Thiago.\nA rainha Dona Maria, com seu filho el-rei Dom Pedro e todos os que eram\nem Sevilha, sa\u00edram f\u00f3ra da cidade receber o corpo de el-rei, e foi-lhe\nfeito mui honradamente tudo aquillo que cumpria, e soterrado na egreja\nde Santa Maria, na capella dos Reis.\nEl-rei D. Pedro, sabendo a partida de seus irm\u00e3os e dos outros fidalgos,\ne como estavam em Aljazira, mandou saber secretariamente que maneira\ntinham, e achou que se apoderavam do logar o mais que podiam; e mandou\nl\u00e1 gal\u00e9s armadas, e Guterre Fernandez de Toledo por capit\u00e3o: e o conde\nD. Henrique, e os outros vendo que lhes n\u00e3o cumpria estar alli,\ntornaram-se para Moram, onde estava Dom Fern\u00e3o Rodriguez Ponce.\nEm isto foi-se Dona Leonor Nunez a Sevilha, e posta de parte a seguran\u00e7a\nque lhe feita tinha, mandou-a el-rei guardar mui bem no alca\u00e7ar, e\ntrataram depois, por parte de el-rei, com o conde Dom Henrique, e com os\noutros senhores, de guisa que se vieram todos a Sevilha para el-rei. E o\nconde ia v\u00ear cada dia sua madre, com a qual estava Dona Joanna, filha de\nDom Jo\u00e3o Manuel, sua esposa. E houveram accordo, a madre com o filho,\nque houvesse ajuntamento com sua esposa, por se n\u00e3o desfazer o casamento\nsegundo rugiam; e fel-o assim, e pezou d'isto muito a el-rei, e \u00e1 rainha\nsua madre, e a outros muitos, e por isto defendeu el-rei que a n\u00e3o fosse\nnenhum mais v\u00ear: e levaram-na d'alli para Carmona, e o conde Dom\nHenrique fugiu para as Asturias, por quanto lhe disseram que o mandava\nel-rei prender. Depois foi levada Dona Leonor, sua m\u00e3e, a Talavera, e\nalli a mandou matar a rainha Dona Maria por Affonso Fernandez de Olmedo,\nseu escriv\u00e3o, como j\u00e1 tendes ouvido.\nO conde Dom Henrique estando nas Asturias, ouviu como el-rei mandara\nmatar sua madre, e depois Garcia Lasso, adiantado de Castella, e n\u00e3o\nousou de estar alli, e foi-se a Portugal para el-rei Dom Affonso: e\nquando el-rei Dom Pedro fez vistas com seu av\u00f4 em Cidade Rodrigo, como\ndissemos, rogou el-rei Dom Affonso a seu neto que perdoasse ao conde, e\nelle perdoou-lhe, e tornou-se o conde para as Asturias, c\u00e1 n\u00e3o ousou de\nse ir para el-rei.\nE elle nas Asturias, soube el-rei como abastecia Gijon, e foi-se l\u00e1, e\ncercou o lugar, onde estava sua mulher Dona Joanna, c\u00e1 elle n\u00e3o se\natreveu de o esperar alli, e foi-se em tanto a uma montanha mui forte\nque dizem Montojo, e os de Gijon pleitearam com el-rei que perdoasse ao\nconde, e a el-rei prouve, e tornou-se.\nE quando el-rei houve de fazer suas b\u00f4das em Valhadolid com Dona Branca,\nsegundo cont\u00e1mos, chegou o conde Dom Henrique e Dom Tello seu irm\u00e3o, e\ntrazia o conde seiscentos homens de cavallo e mil e quinhentos de p\u00e9; e\nsendo em Cijalles, duas leguas d'onde el-rei estava, mandou-lhe dizer\nque n\u00e3o ousaria de entrar na villa, salvo com toda sua gente, porquanto\nse receava de alguns que eram na c\u00f4rte. E el-rei mandou-o segurar: n\u00e3o\nse fiaram do seguro, e houveram de pelejar com el-rei, que sahiu a\nelles. Depois, foram de accordo com elle, e ficaram em sua merc\u00ea.\nCasou el-rei com Dona Branca, e deixou-a em outro dia, e foi-se para\nDona Maria de Padilha. E d'essa id\u00e9ia foi desavindo d'elle Dom Jo\u00e3o\nAffonso de Albuquerque que governava a casa d'el-rei. E tratou-se depois\nque Dom Jo\u00e3o Affonso estivesse em Portugal, se quizesse, e que seus\ncastellos e bens, que havia em Castella, fossem seguros: prometteu-lh'o\nel-rei assim, e depois que Dom Jo\u00e3o Affonso foi em Portugal, cercou-lhe\nel-rei Medelin, e cobrou-o, e fel-o derribar, e depois cercou\nAlbuquerque, e n\u00e3o o podendo tomar, partiu-se d'alli, e deixou por\nfronteiros, em Badalhouce, o conde Dom Henrique e o mestre de S\u00e3o Thiago\nDom Fradarique, seu irm\u00e3o.\nPartido el-rei d'alli, enviou o conde seu recado a Dom Jo\u00e3o Affonso, que\nfossem todos trez amigos, e entrassem por Castella, e a elle prouve\nmuito, e firmaram seu preito de ser assim; e houveram Dom Fernando de\nCastro em sua ajuda, que estava em Galliza, e come\u00e7aram de entrar por\nCastella, fazendo n'ella grande estrago.\nN'isto mandou el-rei Dom Pedro Jo\u00e3o Affonso de Henestrosa, seu\ncamareiro-m\u00f3r, a Arevalo onde estava a rainha Dona Branca, sua mulher,\nque a trouxesse ao alcan\u00e7ar de Toledo, e elle trazendo-a pela cidade,\ndisse ella que queria ir primeiro fazer ora\u00e7\u00e3o \u00e1 igreja de Santa Maria,\ne d\u00eas-que foi dentro na igreja, n\u00e3o quiz mais sahir d'ella, receando-se\nde ser morta ou presa. Jo\u00e3o Affonso n\u00e3o se atreveu de a fazer sahir da\nigreja contra sua vontade, e tornou-se para el-rei. Os moradores de\nToledo falando sobre isto, houveram piedade da rainha, e accordaram de a\nn\u00e3o deixar prender nem matar n'aquella cidade, e determinaram de p\u00f4r por\nella os corpos, e quanto haviam. E mandaram primeiro por Dom Fradarique\nmestre de S\u00e3o Thiago, e colheram-no dentro com suas companhas, e mais\nenviaram suas cartas ao conde Dom Henrique, e a Dom Jo\u00e3o Affonso\nd'Abuquerque, e a Dom Fernando de Castro, fazendo-lhe saber sua\ninten\u00e7\u00e3o; e tiveram com Toledo, por parte da rainha, a cidade de\nCardona, e Cuenca, e o bispado de Jaen e Talavera. Que cumpre dizer\nmais: os infantes Dom Fernando e Dom Jo\u00e3o, primos d'el-rei, e muitos\nsenhores e cavalleiros, se partiram d'elle por ajudar a ten\u00e7\u00e3o dos\noutros, em guisa que n\u00e3o ficaram com el-rei mais de seiscentos de\ncavallo. E todos aquelles senhores lhe mandavam dizer que prestes eram\npara o servir e fazer seu mandado, com tanto que tomasse sua mulher, e\nvivesse com ella e n\u00e3o regesse o reino pelos parentes de Dona Maria de\nPadilha, nem os fizesse seus privados: e el-rei n\u00e3o quiz cair em tal\npreitesia.\nN'isto adoeceu Dom Jo\u00e3o Affonso de Albuquerque, e el-rei mandou\nencobertamente tratar com o physico, que pensava d'elle, que lhe faria\nmerc\u00eas e que lhe desse com que morresse; e elle fel-o assim, segundo\ndepois foi sabido; e os vassalos de Dom Jo\u00e3o Affonso prometteram de n\u00e3o\nenterrar o seu corpo at\u00e9 que esta demanda fosse acabada, e elle assim o\nmandou em seu testamento. E quando aquelles senhores ordenavam conselho\nsobre aquillo que lhes convinha fazer, falava em lugar de Dom Jo\u00e3o\nAffonso, Ruy Dias Cabe\u00e7a-de-Vacca, que f\u00f4ra seu mordomo-m\u00f3r. E eram as\ngentes d'estes senhores todos at\u00e9 cinco mil de cavallo, e muita gente de\np\u00e9.\nAcima vendo el-rei como perdia as gentes por esta guisa, houve conselho\nde se p\u00f4r em poder d'elles, na villa de Toro, e alli partiram elles logo\nos officios do reino e da casa d'el-rei entre si, de guisa que a el-rei\nn\u00e3o prouve; e ent\u00e3o foram enterrar o corpo de Dom Jo\u00e3o Affonso, tendo\nque sua demanda era j\u00e1 acabada.\nEl-rei sentindo-se como preso, segundo a maneira que com elle tinham,\nfingiu que queria ir \u00e1 ca\u00e7a, e uma grande manh\u00e3 cavalgou, e foi-se para\nSegovia, e foram-se os infantes para el-rei por suas preitesias, e\ncome\u00e7ou-se de desfazer a companhia que se antes juntara. E o conde Dom\nHenrique, e Dom Tello e Dom Fradarique, seus irm\u00e3os, ficaram a uma\nparte, e seriam por todos at\u00e9 mil e duzentos de cavallo, e muitos homens\nde p\u00e9. E houveram entrada em Toledo, e foi el-rei \u00e1 cidade, e cobrou-a,\ne elles deixaram-na, e foram-se.\nDepois lhes enviou rogar a rainha Dona Maria que se fossem para Toro,\nonde ella estava, receando-se del-rei, seu filho; e foram-se all\u00e1, e\nchegou ahi el-rei com suas gentes, e pelejaram nas barreiras, e n\u00e3o\npoude el-rei ahi assocegar por mingua d'agua, e partiu-se d'ahi.\nE depois que se el-rei foi, partiu-se o conde Dom Henrique para Galliza,\nuns diziam que para se ajuntar com Dom Fernando de Castro, outros\naffirmavam que o fazia o conde por n\u00e3o ser cercado. E quizera el-rei\npartir empoz elle, e depois houve em conselho de tomar primeiro a villa\nde Toro; e cercou-a outra vez, e tratou com Dom Fradarique, seu irm\u00e3o, e\ndo conde Dom Henrique, que ficava na villa por guarda, que se fosse para\nelle: e elle fel-o assim. E em outro dia cobrou el-rei a villa, por uma\nporta que lhe deram, e prendeu Dona Joanna, mulher do conde Dom\nHenrique, e fez matar alguns do lugar, e mais aquelles cavalleiros que\nforam mortos acerca da rainha sua madre, como dissemos.\nQuando o conde Dom Henrique soube como el-rei cobrara a villa de Toro, e\nmatara aquelles cavalleiros que tinha por sua parte, e que o mestre Dom\nFradarique, seu irm\u00e3o, era j\u00e1 com el-rei de accordo, entendeu que lhe\nn\u00e3o cumpria mais aporfiar na guerra, nem estar mais tempo no reino e\npreitejou com el-rei, que lhe desse cartas de seguro para se ir para\nFran\u00e7a: e a el-rei prouve disto, e deu-lh'as.\nE soube o conde como el-rei mandara ao infante Dom Jo\u00e3o e a Diego Perez\nSarmento seu adiantado-mor, e a todos os outros cavalleiros e officiaes\ndas comarcas por onde elle cuidava que o conde fosse, que lhe tivessem o\ncaminho e o matassem; assim como depois matou todos os senhores e homens\nde estado que foram na companhia da demanda que se levantou contra elle\npor raz\u00e3o da rainha Dona Branca.\nE o conde partiu de Galliza, e foi pelas Asturias, por quanto por\naquella comarca n\u00e3o havia mandamento d'el-rei, pensando elle pouco que\nfosse por alli, e passou trigosamente, e foi-se pela Biscaia, onde\nestava Dom Tello seu irm\u00e3o, e d'ahi se passou por mar \u00e1 Rochella, onde\nachou el-rei de Fran\u00e7a, que havia guerra com os inglezes, e tomou d'elle\nsoldo.\nE d'esta guisa foi sua desaven\u00e7a com el-rei Dom Pedro seu irm\u00e3o, e\npartida do reino de Castella, durando n'estas desaven\u00e7as, todas que\nouvistes n'este capitulo, passados de sete annos.\n*CAPITULO XVIII*\n_Como e por qual aso se come\u00e7ou a guerra entre Castella e Arag\u00e3o_.\nAndando em sete annos que el-rei Dom Pedro de Castella reinava, na era\nde mil e trezentos e noventa e quatro, estando el-rei em Sevilha, mandou\narmar uma gal\u00e9 para ir folgar e v\u00ear a pescaria que faziam nas covas das\nalmadravas. E foi em uma gal\u00e9 a S\u00e3o Lucas de Barrameda, e achou ahi, no\nporto, dez gal\u00e9s de catal\u00e3es e um lenho de que era capit\u00e3o um cavalleiro\naragonez, que diziam Mosse Frances de Emperellores, as quaes iam, por\nmandado de el-rei de Arag\u00e3o, em ajuda de el-rei de Fran\u00e7a contra el-rei\nde Inglaterra.\nE entrando elle capit\u00e3o n'aquelle porto por tomar refresco, achou ahi\ndois baixeis de plazentinos carregados de azeites, que iam para\nAlexandria, e tomou os, dizendo que eram navios de genovezes, com que os\ncatal\u00e3es haviam guerra ent\u00e3o.\nEl-rei lhe mandou dizer que pois aquelles baixeis estavam em seu porto,\nque os n\u00e3o quizesse tomar, ao menos por sua honra d'elle, pois estava de\npresente. E elle respondeu que aquellas gentes eram inimigos d'el-rei\nd'Arag\u00e3o, e que os podia tomar de boa guerra. E el-rei lhe mandou dizer,\noutra vez, que fosse certo, se os deixar n\u00e3o quizesse, que mandaria\nprender em Sevilha todos os mercadores catal\u00e3es que ahi eram, e\ntomar-lhes todos seus bens.\nO capit\u00e3o das gal\u00e9s por tudo isto n\u00e3o o quiz fazer, e vendeu logo alli\nos baixeis por setecentas dobras, e foi-se seu caminho, sem mais falar a\nel-rei.\nE el-rei houve d'isto grande melancolia, e n\u00e3o sem raz\u00e3o, mas a vingan\u00e7a\nfoi desarrazoada; porque assim como de pequena faisca se accende grande\nfogo, achando coisa disposta em que obre, assim el-rei Dom Pedro com\ndestemperada sanha, por tomar d'aquillo vingan\u00e7a, moveu crua guerra\ncontra Arag\u00e3o, de sangue e fogo, por muitos annos, como ora brevemente\nouvireis; c\u00e1 elle mandou logo prender em Sevilha todos os mercadores\ncatal\u00e3es que ahi eram, e escrever lhes todos seus bens, e outro dia\npartiu-se \u00e1 pressa por terra, e fel-os todos p\u00f4r em cadeias, e vender\nquanto lhes acharam.\nE mandou logo a el-rei de Arag\u00e3o fazer-lhe queixume de Mosse Frances, da\npouca honra e cortezia que n'elle achara, mandando-lh'o rogar por duas\nvezes, e que por\u00e9m lhe requeria que lh'o entregasse para d'elle haver\nemenda, e anadiu mais que tirasse uma commenda que dera a Dom Pedro\nMoniz de Godoi, que era homem a que bem n\u00e3o queria, e se estas cousas\nfazer n\u00e3o quizesse, que fosse certo que lhe faria guerra.\nE el-rei de Arag\u00e3o deu sua resposta, que lhe pesava do nojo que a el-rei\nf\u00f4ra feito, e que como aquelle cavalleiro tornasse para seu reino, que\nelle o ouviria e faria justi\u00e7a, de guisa que el-rei de Castella fosse\ncontente; e que a commenda que havia dada a Dom Pedro Moniz, pois a\nel-rei n\u00e3o prazia d'ello, que cataria outra cousa de que lhe fizesse\nmerc\u00ea, mas que at\u00e9 que al lhe d\u00e9sse, que lh'a n\u00e3o podia tirar sem grande\nsua mingua.\nO mensageiro, que bem sabia a vontade de el-rei Dom Pedro, n\u00e3o foi\ncontente d'esta resposta, e desafiou o logo, e seu reino.\nEl-rei de Arag\u00e3o disse que el-rei de Castella n\u00e3o havia justa raz\u00e3o para\nfazer isto, e que o deixava em juizo de Deus, e mandou logo aperceber\nsua terra.\n*CAPITULO XIX*\n_Como el-rei de Castella entrou por Arag\u00e3o e das cousas que fez n'este\nanno_.\nEl-rei de Castella, emquanto mandou a Arag\u00e3o o recado que haveis ouvido,\nantes que a resposta de l\u00e1 viesse, com desejo de tomar vingan\u00e7a, mandou\n\u00e1 pressa armar sete gal\u00e9s e seis naus; e metteu-se el-rei n'ellas,\ncuidando de achar na costa de Portugal aquelle cavalleiro, e chegou at\u00e9\nTavira, e soube que era passado, e tornou-se para Sevilha; e mandou\nel-rei as gal\u00e9s \u00e1 ilha de Ivi\u00e7a, e come\u00e7ou-se a guerra por todas as\npartes.\nN'isto come\u00e7ou-se a era de mil trezentos e noventa e cinco, em cuja\nses\u00e3o morreu el-rei Dom Affonso de Portugal, a que este rei Dom Pedro,\nseu neto, mandara pedir ajuda para esta guerra, segundo antes havemos\ncontado; e vendo el-rei de Arag\u00e3o a n\u00e3o boa maneira que el-rei de\nCastella com elle queria ter, fel-o saber ao conde Dom Henrique e a\nalguns cavalleiros castelhanos que andavam em Fran\u00e7a por medo de el-rei\nDom Pedro, e o conde com elles vieram-se para elle, e el-rei os recebeu\nmui bem e deu ao conde certos castellos em que tivesse suas gentes, e\nsoldo para oitocentos de cavallo.\nEl-rei de Castella, como isto soube, partiu de Sevilha e entrou por\nArag\u00e3o, e tomou alguns castellos, e tornou-se para De\u00e7a, uma sua villa\nna fronteira de Arag\u00e3o; e acendia-se a guerra cada vez mais.\nE alli chegou a elle o cardeal Dom Guilhem, legado do papa Innocencio,\npara p\u00f4r aven\u00e7a entre elles, e n\u00e3o podendo fazer que cessasse a guerra\nde todo, por as cousas mui graves de outorgar que el-rei Dom Pedro\nrequeria a el-rei de Arag\u00e3o, fez entanto uma tregua de quinze dias, os\nquaes durando, tomou el-rei Dom Pedro a cidade de Tara\u00e7ona. E o cardeal\nse aggravou contra el-rei, dizendo que emquanto elle f\u00f4ra falar a el-rei\nde Arag\u00e3o, durando ainda os dias da tregoa, tomara elle aquella cidade,\ne el-rei dizendo que j\u00e1 eram passados, e o cardeal dizendo que n\u00e3o,\nficou o lugar por el-rei bem fornecido de gentes.\nE d'esta segunda vez que el-rei entrou em Arag\u00e3o e tomou a cidade de\nTara\u00e7ona, se vieram para elle muitas gentes de seus reinos e alguns\ninglezes, em guisa que eram sete mil de cavallo e dois mil ginetes e\nmuita gente de p\u00e9.\nE vendo o cardeal que n\u00e3o podia entre os reis tratar firme paz, ordenou\nque houvessem tregua por um anno, e foi apregoada uma segunda-feira, dez\ndias de maio d'esta era, e el-rei veiu-se ent\u00e3o a Sevilha por mandar\nfazer gal\u00e9s, e encaminhar de fazer armada no anno seguinte, tanto que as\ntreguas fossem saidas.\nN'este comenos, durando a tregua, tratou Pero Carrilho, que vivia com o\nconde Dom Henrique, suas aven\u00e7as com el-rei Dom Pedro, que o herdasse em\nseu reino e que se viria para elle; e a el-rei prouve, e fel-o assim. E\nPero Carrilho, desde que segurou por alguns dias, guisou como pudesse\nlevar a condessa Dona Joanna, que estivera presa desde que el-rei tomara\na villa de Toro, para o conde seu marido, e foi assim de feito que a\nlevou.\nE d'esta guisa cobrou o conde sua mulher, e pesou muito a el-rei Dom\nPedro quando soube que a assim levaram.\n*CAPITULO XX*\n_Como el-rei Dom Pedro fez matar o mestre de S\u00e3o Thiago Dom Fradarique,\nseu irm\u00e3o, no alca\u00e7ar de Sevilha_.\nSe dizem que o que faz nojo a outrem escreve o que faz no p\u00f3, e o\ninjuriado em pedra marmore, bem se cumpriu isto em el-rei Dom Pedro; c\u00e1\nelle movido por sobejo queixume contra seus irm\u00e3os e outros do reino,\npor aso da ten\u00e7\u00e3o que tomaram em favor da rainha Dona Branca e contra os\nparentes de Dona Maria de Padilha, segundo ouvistes (que j\u00e1 em tempo\nhavia mais de trez annos, andando ent\u00e3o a era em mil e trezentos e\nnoventa e seis,) ordenou em Sevilha, alli onde estava, de matar o mestre\nde S\u00e3o Thiago Dom Fradarique, seu irm\u00e3o, e mandou-o chamar onde vinha da\nguerra que f\u00f4ra tomar a villa de Jumilha, que \u00e9 no reino de Murcia, por\nlhe fazer servi\u00e7o.\nE no dia que o mestre havia de chegar \u00e1 cidade, chamou el-rei em sua\ncamara o infante Dom Jo\u00e3o, seu primo, e tomou-lhe juramento sobre a Cruz\ne os Evangelhos, e descobriu-lhe como o queria matar, rogando-lhe que o\najudasse a fazer tal obra, e ter-lh'o-hia em servi\u00e7o, e como fosse\nmorto, que logo entendia de ir a Biscaia matar o outro irm\u00e3o Dom Tello,\ne dar-lhe a elle as suas terras. O infante Dom Jo\u00e3o respondeu que lhe\ntinha em grande merc\u00ea querer fiar d'elle seus segredos, e que lhe prazia\nmuito do que tinha ordenado, e era contente de o fazer assim.\nN'isto chegou Dom Fradarique, antes de comer, uma ter\u00e7a-feira, vinte e\nnove dias de maio, e como chegou de caminho foi logo v\u00ear el-rei, que\nestava no alca\u00e7ar da cidade jogando as tabolas, e beijou-lhe a m\u00e3o e\nmuitos cavalleiros com elle. E el-rei o recebeu mui bem, mostrando-lhe\nboa vontade, e perguntou-lhe d'onde partira, e que pousadas tinha. O\nmestre disse que partira de Santilhana, que s\u00e3o d'alli cinco leguas, e\nque as pousadas cuidava que seriam boas. E el-rei, porque entraram\nmuitos com o mestre, disse que se fosse aposentar, e depois se viria\npara elle.\nO mestre partiu-se, e foi v\u00ear Dona Maria de Padilha e as sobrinhas, que\nestavam em outra parte dos pa\u00e7os, e d'alli se veiu ao curral onde\ndeixara as bestas, e n\u00e3o achou ahi nenhuma, c\u00e1 assim fora mandado aos\nporteiros.\nO mestre n\u00e3o sabendo se tornasse a el-rei, ou que fizesse, disse-lhe um\nseu cavalleiro, suspeitando mal de tal feito, que se saisse pelo postigo\ndo curral, que estava aberto, c\u00e1 lhe n\u00e3o minguaria besta se fosse f\u00f3ra.\nElle cuidando se o faria, vieram-lhe dizer que o chamava el-rei, e elle\ncome\u00e7ou de tornar para el-rei, pero espantado, receando-se muito. E como\nia entrando pelas portas dos pa\u00e7os e das camaras, assim ia cada vez mais\ndesacompanhado, em guisa que quando chegou onde el-rei estava, n\u00e3o ia\ncom elle salvo o mestre de Calatrava. E estiveram \u00e1 porta ambos, e n\u00e3o\nlhes abriram; e pero lhe todas estas cousas apresentavam mensagem de\nmorte, vendo-se sem culpa, tomava j\u00e1 em si quanto de esfor\u00e7o.\nN'isto abriram o postigo do pa\u00e7o onde el-rei estava, e el-rei disse a\nPero Lopez de Padilha, seu b\u00e9steiro-m\u00f3r, que prendesse o\nmestre.--Senhor, disse elle,--qual d'elles?--O mestre de S\u00e3o\nThiago,--disse el-rei. E elle travou d'elle, dizendo:--S\u00eade preso!\nO mestre ficou espantado, e quando ouviu outra vez que el-rei dizia aos\nb\u00e9steiros da ma\u00e7a que o matassem, desenvolveu-se de Pero Lopez, que o\ntinha preso, e houve-se no curral; e quiz tirar a espada que tinha na\ncinta, e foi sua ventura que n\u00e3o poude, por aso do tabardo que tinha\nvestido, e andando muito rijo de uma parte \u00e1 outra, n\u00e3o o podiam ferir\nos b\u00e9steiros com as ma\u00e7as, at\u00e9 que o houveram de ferir, e caiu em terra\nmorto.\nEl-rei, quando viu o mestre jazer em terra, saiu pelo alca\u00e7ar cuidando\nachar alguns dos seus para os matar, e n\u00e3o os achou, c\u00e1 eram fugidos e\nescondidos. E achou no pa\u00e7o onde estava Dona Maria de Padilha, Sancho\nDiaz de Vilhegas, camareiro-m\u00f3r do mestre, que se acolhera alli quando\nouviu dizer que o matavam, e tomou Dona Beatriz, filha de el-rei, nos\nbra\u00e7os, cuidando por ella escapar da morte, e el-rei fez-lh'a tirar das\nm\u00e3os, e deu-lhe com uma brocha que trazia, e matou-o. E tornou-se onde\njazia o mestre, e achou que n\u00e3o era bem morto, e fel-o matar a um seu\nmo\u00e7o da camara: d'ahi, foi-se assentar a comer.\nE mandou logo n'esse dia, pelo reino, que matassem estas pessoas, a\nsaber: em Cordova, a Pero Cabrera, um cavalleiro que ahi morava, e um\njurado que diziam Fernando Affonso de Gachete; e mandou matar Dom Lopo\nSanchez de Vendano, commendador-m\u00f3r de Castella; e mataram, em\nSalamanca, Affonso Jofre Tenorio; e em Toro, Affonso Perez Fermosilhe; e\nmataram, em Mora, Gon\u00e7alo Mendez de Toledo. E estes dizia el-rei que\nmandava matar porque foram da parte da rainha Dona Branca; e pero lhes\nel-rei havia j\u00e1 perdoado, n\u00e3o curando do que promettera, mandou a todos\ncortar as cabe\u00e7as.\n*CAPITULO XXI*\n_Como el-rei partiu de Sevilha por tomar Dom Tello, seu irm\u00e3o, para o\nmatar; e como matou o infante Dom Jo\u00e3o, seu primo_.\nEstando el-rei ainda comendo, mandou chamar logo o infante Dom Jo\u00e3o, seu\nprimo, e disse-lhe em segredo como, tanto que comesse, queria partir\npara Biscaia, por ir matar Dom Tello, seu irm\u00e3o, e que se fosse com\nelle, e dar-lhe-ia o senhorio d'aquella terra.\nO infante, n\u00e3o embargando que estivesse casado com Dona Isabel, irm\u00e3 da\nmulher do conde Dom Tello, prouve-lhe muito com taes novas, e beijou as\nm\u00e3os a el-rei por ello, cuidando pouco no que lhe elle tinha ordenado: e\nel rei partiu logo, e o infante com elle, e foi em sete dias em Aguilar\ndo Campo, onde Dom Tello estava.\nE Dom Tello andava aquelle dia ao monte, e um seu escudeiro, quando viu\nel-rei foi-lh'o logo dizer, tossemente. E elle fugiu \u00e1 pressa, e chegou\na Bermeto uma sua villa ribeira do mar, e entrou em pina\u00e7as de\npescadores, e foi-se para Bayona de Inglaterra.\nEl-rei, cuidando de o tomar, seguiu o caminho por onde elle f\u00f4ra, e\naquelle dia que Dom Tello chegou a Bermeo e entrou no mar, esse dia\nchegou el-rei, e entrou em outros navios, cuidando de o alcan\u00e7ar. O mar\nera um pouco buli\u00e7oso, e el-rei anojou-se, e deixou de o seguir porque\nia mui longe, e tornou-se em terra, e prendeu Dona Joanna, sua mulher.\nO infante Dom Jo\u00e3o, quando viu Dom Tello por esta guisa partido, disse a\nel-rei que bem sabia sua merc\u00ea como lhe dissera em Sevilha que queria\nmatar Dom Tello, e dar-lhe a terra de Biscaia, que era sua, e que pois\nDom Tello era f\u00f3ra do reino sem sua gra\u00e7a, que fosse sua merc\u00ea de lh'a\ndar como lhe promettera. E el-rei disse que mandaria aos biscainhos que\nse ajuntassem, como haviam de costume, e que elle iria l\u00e1, e lhe\nmandaria que o tomassem por senhor. E o infante, com leda esperan\u00e7a de\ncobrar a terra, lhe beijou as m\u00e3os por isto, tendo-lh'o em grande merc\u00ea.\nOs biscainhos indo para se ajuntar onde haviam de costume, falou el-rei\ncom os maiores d'elles, dizendo-lhes em segredo que respondessem, quando\nelle propuzesse para dar a terra a Dom Jo\u00e3o, que n\u00e3o queriam outro\nsenhor salvo el-rei; e elles disseram que assim o fariam.\nElles juntos, bem dez mil, propoz el-rei muitas raz\u00f5es por parte do\ninfante seu primo, como a terra de Biscaia lhe pertencia por direito,\npor aso do casamento de sua mulher, e que lhes rogava e mandava que o\ntomassem por senhor: elles responderam que nunca tomariam outro senhor\nsalvo el-rei de Castella, e que nenhum lhes fallasse em outra cousa. E\nel-rei disse ent\u00e3o ao infante, que bem via as vontades d'aquelles\nhomens, que o n\u00e3o queriam haver por senhor, por\u00e9m, que elle iria a\nBilbao, e que ainda tornaria outra vez a falar com elles que o tomassem\npor senhor. O infante come\u00e7ou de entender que isto era encoberta que el\nrei fazia, e teve-se por mal contente.\nEl-rei em Bilbao, mandou em outro dia chamar o infante, e elle veiu, e\nentrou s\u00f3 na camara, e ficaram dois seus \u00e1 porta; e os que sabiam parte\nde sua morte come\u00e7aram de joguetear com elle, por lhe tomarem um pequeno\ncutello que trazia, e assim o fizeram; e Martim Lopez, camareiro-m\u00f3r de\nel-rei, abra\u00e7ou-se ent\u00e3o com o infante, e um b\u00e9steiro deu-lhe com uma\nma\u00e7a na cabe\u00e7a, e d\u00eas-ahi outros, e caiu o infante morto: e foi isto uma\nter\u00e7a-feira, havendo quinze dias que o mestre Dom Fradarique f\u00f4ra morto\nem Sevilha. E el-rei mandou-o deitar na rua por uma janella da casa onde\npousava, e disse aos biscainhos que estavam ahi juntos:--V\u00eades ahi o\nvosso senhor de Biscaia, que vos demandava por seus?\nIsto feito, mandou logo el-rei Jo\u00e3o Fernandes de Hinestrosa que se fosse\na Roa, onde estavam a rainha de Arag\u00e3o, sua tia, madre do dito infante,\ne Dona Isabel, sua mulher, e que as prendesse ambas, n\u00e3o sabendo parte a\nmadre do filho, nem a mulher do marido. E foram presas em um dia, e\nel-rei chegou no outro, e fez-lhes tomar quando tinham, e mandou-as\npresas a Castro Exariz; e d'alli partiu-se, e veiu-se a Burgos, onde\nesteve uns oito dias, e alli lhe trouxeram as cabe\u00e7as d'aquelles que\nouvistes que mandara matar pelo reino, quando o mestre Dom Fradarique\nfoi morto.\n*CAPITULO XXII*\n_Como foi quebrada a tregua de um anno que havia entre os reis, e como\nel-rei Dom Pedro juntou armada por fazer guerra a Arag\u00e3o_.\nN\u00f3s n\u00e3o dissemos a morte do mestre Dom Fradarique e do infante Dom Jo\u00e3o,\nda guisa que ora ouvistes, por nos prazer contar crueldades, mas\npuzemol-as um pouco assim compridas, mais que dos outros, porque eram\nnotaveis pessoas, e v\u00eardes o geito que el-rei teve em os matar.\nOnde sabei, que por este aso n\u00e3o embargando que ainda durasse a tregua\nde um anno, que o cardeal puzera entre el-rei Dom Pedro e el-rei de\nArag\u00e3o, que tanto que o conde Dom Henrique soube como Dom Fradarique,\nseu irm\u00e3o, era morto, e isso mesmo disseram ao infante Dom Fernando,\nmarquez de Tortosa, da morte do infante Dom Jo\u00e3o, seu irm\u00e3o, juntaram\nlogo suas gentes, e entraram por Castella. E o conde entrou por terra de\nSoria, e chegou \u00e1 villa de Seiron, e a rombou, e combateu o castello e\nalca\u00e7ar cuidando de o tomar, e tornou-se para Arag\u00e3o; e o infante Dom\nFernando entrou pelo reino de Murcia, e fez muito damno n'aquella terra.\nEl-rei soube isto em Valhadolid, e p\u00f4z logo fronteiros contra Arag\u00e3o, e\nveiu-se a Sevilha, e fez armar \u00e1 pressa doze gal\u00e9s; e em as armando,\nchegaram seis gal\u00e9s de genovezes, que ent\u00e3o haviam guerra com os\ncatal\u00e3es, e prouve muito a el-rei com ellas, e tomou-as a soldo, dando\npor mez a cada uma mil dobras cruzadas. E com estas dezoite gal\u00e9s chegou\na uma villa, que chamam Guadamar, que era do infante Dom Fernando, e fez\nel-rei uma manh\u00e3, que eram dezesete dias de agosto, sair muita gente de\ntodas as gal\u00e9s para combater a villa, e pero fosse bem cercada, tomou-a\npor for\u00e7a, e acolheram-se muitos ao castello.\nE estando o combatendo, \u00e1 hora do meio dia, al\u00e7ou-se um vento mui forte,\nque \u00e9 travessia n'aquella terra, e como as gal\u00e9s estavam sem gente, deu\ncom todas a travez \u00e1 costa, que n\u00e3o escaparam mais de duas que jaziam\ndentro no mar, uma d'el-rei e outra dos genovezes. E \u00e1s dezeseis mandou\nel-rei p\u00f4r o fogo, porque se n\u00e3o podiam reparar: e dos remos, e outros\napparelhos, n\u00e3o se salvou sen\u00e3o mui pouco, que pozeram em uma nau de\nLaredo, que ahi estava. E houve el-rei, e os patr\u00f5es dos gal\u00e9s, bestas\nem que partiram d'alli, das gentes de Guterre Gomez de Toledo, que\nchegara ahi, elle e outros, com seiscentos de cavallo; e foi-se el-rei\nmui triste com este acontecimento, e todos os das gal\u00e9s de p\u00e9 com elle,\nmui nojosos.\nE chegou el-rei a Murcia, e foram-se os genovezes para sua terra em\nnavios de Cartagena, e el-rei mandou logo a Sevilha que fizessem \u00e1\npressa gal\u00e9s. E em oito mezes foram feitas doze gal\u00e9s novas, e reparadas\nquinze d'outras que estavam nas tercenas; e fez fazer muitas armas e\ngrande almazem, e mandou perceber todos os navios do reino que n\u00e3o\nfretassem para nenhuma parte.\nE partiu el-rei de Murcia, e foi-se \u00e1 fronteira de Arag\u00e3o, e ganhou\nalguns castellos, e tornou-se para Sevilha: e foi esta a quarta vez que\nel-rei Dom Pedre entrou em Arag\u00e3o.\n*CAPITULO XXIII*\n_Como veiu o cardeal de Bolonha para fazer paz entre el-rei de Castella\ne el-rei de Arag\u00e3o, e os n\u00e3o poude p\u00f4r de accordo_.\nEstando el-rei Dom Pedro assim em Sevilha, soube como Dom Guilhem,\ncardeal de Bolonha, era na villa de Alma\u00e7an, por tratar paz entre elle e\nel-rei de Arag\u00e3o. E fez saber o cardeal a el-rei se lhe prazia de ir a\nSevilha, onde elle estava, ou se aguardaria alli por elle, havendo de ir\npara aquella comarca.\nE el-rei era j\u00e1 partido de Sevilha para a fronteira de Arag\u00e3o, quando\nlhe chegou este recado em Villa Real, e disse que lhe prazia muito com\nsua vinda, e que o aguardasse n'aquella villa, c\u00e1 elle ia direitamente\npara ella. E foi assim que chegou ahi el-rei a poucos dias, e falou o\ncardeal a el-rei, presentes os do seu conselho, tudo o que lhe o papa\nenviava dizer, assim do nojo que tomava pela guerra em que eram elle e\nel-rei de Arag\u00e3o, como do gr\u00e3o prazer que haveria se os visse postos em\npaz.\nEl-rei respondeu que a guerra que elle havia com el-rei de Arag\u00e3o era\nmuito por sua culpa, e contou ao cardeal o que lhe adviera com o capit\u00e3o\nde suas gal\u00e9s na foz de Barrameda de San Lucar, como j\u00e1 ouvistes, e como\nfizera saber tudo a el-rei de Arag\u00e3o, e que nunca quizera tornar a ello\ncomo devia, e demais, que mandara a Fran\u00e7a por todos seus inimigos, para\nlhe fazer com elles guerra.\nO cardeal disse que queria ir falar a el-rei de Arag\u00e3o sobre isto, e\nel-rei disse que lhe prazia, e que de boamente haveria com elle paz,\nfazendo el-rei de Arag\u00e3o estas cousas: primeiramente, que lhe entregasse\naquelle cavalleiro, para d'elle fazer justi\u00e7a onde elle quizesse, e que\nlan\u00e7asse f\u00f3ra do reino o infante Dom Fernando, marquez de Tortosa, seu\nirm\u00e3o, e mais D. Henrique, conde de Trastamara, e todos os outros que\nvieram em ajuda da guerra, e que lhe desse os castellos de Oriola e\nAlicante, e outros logares que foram de Castella antigamente, e mais\npelas despezas que fizera na guerra lhe tornasse quinhentos mil florins.\nO cardeal, pero lhe isto parecessem cousas desarrazoadas, disse que lhe\nprazia de tomar cargo de ir falar a el-rei de Arag\u00e3o sobre ello; e\nchegou a Arag\u00e3o e contou a el-rei, por miudo, todas as cousas que lhe\nel-rei dissera.\nEl-rei de Arag\u00e3o respondeu, dizendo assim:--Cardeal amigo, bem v\u00eades v\u00f3s\nque se elle houvesse vontade de haver comigo paz, que me n\u00e3o demandaria\ntaes cousas como me envia requerer; c\u00e1 o cavalleiro n\u00e3o \u00e9 direito que\nlh'o entregue para o matar, pois n\u00e3o fez por qu\u00ea; mas isto quero fazer,\nmande-o accusar por direito, e se for achado que merece morte, eu lh'o\nquero entregar preso, que o mande matar em seu reino. Ao que diz que\nenvie eu f\u00f3ra de meu reino Dom Henrique, Dom Tello, e Dom Sancho, seus\nirm\u00e3os, pois s\u00e3o seus inimigos, digo que me praz, se ficar com elle de\naccordo, mas desterrar f\u00f3ra do reino o infante Dom Fernando, meu\nlegitimo irm\u00e3o, isto me parece estranho de pedir. Os logares que me\nrequere que lhe entregue, n\u00e3o tenho raz\u00e3o por qu\u00ea, c\u00e1 foram julgados a\neste reino por senten\u00e7a de el-rei Dom Diniz de Portugal, e pelo infante\nDom Jo\u00e3o de Castella, presentes muitos fidalgos de seu reino, e elle e\neu temos cartas de como foram partidos. As despezas que fez na guerra\nn\u00e3o sou tido de lhe pagar, c\u00e1 se n\u00e3o come\u00e7ou por minha vontade, antes me\npezou muito, e peza, de haver entre mim e elle tal desvairo; mas tanto\nlhe farei, se houvermos paz, que havendo elle guerra com el-rei de\nGranada ou de Bellamarin, que o quero ajudar seis annos com dez gal\u00e9s\narmadas \u00e1 minha custa quatro mezes cumpridos, e se mouros passarem, e\nlhe convier p\u00f4r a pra\u00e7a, que o ajude com meu corpo e gentes, e ser com\nelle no dia da batalha. De outra guisa, dizei que lhe requeiro, da parte\nde Deus, que me n\u00e3o queira fazer guerra, pois justa raz\u00e3o n\u00e3o tem, e se\no de outra guisa fizer, deixo tudo na ordenan\u00e7a e justi\u00e7a de Deus.\nTornou o cardeal a el-rei de Castella, e contou-lhe isto que ouvistes, e\nel-rei come\u00e7ou-se de queixar, dizendo que el-rei de Arag\u00e3o n\u00e3o prezava a\nguerra, nem se queria chegar para haver aven\u00e7a com elle, mas que d'esta\nvez provaria cada um para quanto era, por\u00e9m, por elle entender que lhe\nprazia de haver paz, que elle se partia das outras cousas que demandava,\ne que lhe desse os cinco logares que lhe requeria, e que lan\u00e7asse de seu\nreino seus irm\u00e3os e as gentes que eram com elles.\nO cardeal foi d'isto mui l\u00eado, tendo que pois se el-rei D. Pedro descia\ndo que \u00e1 primeira dissera, que poderia aproveitar n'este tratamento, e\nfoi-se a Calatayud, onde el-rei de Arag\u00e3o estava, e contou-lhe como\nel-rei, por bem de paz, requeria s\u00f3mente estas duas cousas.\nEl-rei de Arag\u00e3o houve accordo com os do seu conselho, e disse que as\ngentes todas lan\u00e7aria f\u00f3ra mas que nenhuma villa nem castello n\u00e3o\nentendia de dar de seu reino, e que el-rei de Castella devia ser bem\ncontente da primeira resposta.\nQuando o cardeal tornou com este recado, foi el-rei Dom Pedro mui\nsanhudo, dizendo que tudo eram raz\u00f5es, pelo estorvar da armada que fazer\nqueria, e por\u00e9m disse ao cardeal que lhe perdoasse, c\u00e1 n\u00e3o entendia de\nfalar mais n'isto, mas continuar sua guerra o mais que pudesse. Ao\ncardeal pezou muito de tal resposta, e n\u00e3o podendo mais fazer, cessou de\nfalar em ello.\nEl-rei Dom Pedro mui sanhudo, por tomar logo alguma vingan\u00e7a, passou por\nsenten\u00e7a contra o infante Dom Fernando, seu primo, e contra o conde Dom\nHenrique, e outros cavalleiros muitos, por a qual raz\u00e3o os perdeu ent\u00e3o\nde todo ponto, e o peior d'isto: mandou matar a rainha Dona Leonor, sua\ntia, madre do dito infante Dom Fernando, e Dona Joanna de Lara, mulher\nde Dom Tello, seu irm\u00e3o; nas quaes cousas cumpriu sua vontade, e n\u00e3o fez\nmuito de seu servi\u00e7o. E depois que mandou fazer estas e outras cousas,\np\u00f4z seus fronteiros contra Arag\u00e3o, e partiu de Alma\u00e7an, e veiu-se a\nSevilha.\n*CAPITULO XXIV*\n_Como el-rei de Castella enviou pedir ajuda de gal\u00e9s a el-rei de\nPortugal, e como partiu com sua frota por fazer guerra a Arag\u00e3o_.\nSendo el-rei de Castella em tal desaccordo com el-rei de Arag\u00e3o, e tendo\nvontade de fazer grande armada contra seu reino em este anno de mil e\ntrezentos e noventa e sete, pero assaz de frota tivesse, assim de naus\ncomo de gal\u00e9s, n\u00e3o foi d'isto ainda contente, e mandou dizer a el-rei de\nPortugal, seu tio, por Jo\u00e3o Fernandez de Hinestrosa, seu camareiro-m\u00f3r,\nque lhe rogava que as dez gal\u00e9s, que lhe promettidas havia de dar em\najuda contra Arag\u00e3o, que as mandasse fazer prestes, c\u00e1 lhe eram muito\ncumpridoras.\nA el-rei prouve muito d'ello, e mandou logo armar de boas gentes dez\ngal\u00e9s e uma galeota, e o seu almirante Misser Lan\u00e7arote em ellas.\nEl-rei como soube que as dez gal\u00e9s de Portugal eram prestes, partiu de\nSevilha no mez de abril meiado, com toda sua armada junta, a qual eram\noitenta naus de castello d'avante, e vinte e oito gal\u00e9s suas, e duas\ngaleotas e quatro lenhos, e mais tres gal\u00e9s d'el-rei de Granada, que lhe\nenviara em ajuda a seu requerimento.\nE esteve el-rei em Aljazira quinze dias, aguardando pelas gal\u00e9s de\nPortugal, e quando viu que n\u00e3o vinham, partiu para Cartagena, e alli\nesperou todas suas naus; e foi sobre Guadamar, e tomou a villa e o\ncastello, e d'alli foi pela costa, combatendo alguns logares que tomar\nn\u00e3o poude, e chegou ao rio de Ebro, a cerca de Tortosa, cidade de\nArag\u00e3o, e alli chegaram as dez gal\u00e9s de Portugal, que lhe el-rei seu tio\nenviava em ajuda. E prouve muito a el-rei com ellas, e a todos os da\nfrota, e tinha el-rei ent\u00e3o, por todas, quarenta e uma gal\u00e9s, af\u00f3ra as\nfustas pequenas.\nE partiu el-rei d'alli com toda armada e chegou a Barcelona, uma vespera\nde paschoa, onde estava el-rei de Arag\u00e3o; e achou doze gal\u00e9s armadas, e\nn\u00e3o as poude tomar, c\u00e1 se puzeram todas a travez, junto com a cidade, e\nd'alli as defendiam com muita b\u00e9steria e trons.\nE esteve el-rei ante Barcelona, com toda sua frota, tres dias, e d'alli\nse foi \u00e1 ilha de Ivi\u00e7a, e cercou uma boa villa que ha assim nome; e\ntendo-a afincada com engenhos e bastidas, soube como el-rei de Arag\u00e3o\ntinha armadas quarenta gal\u00e9s com que estava na ilha de Mayorca, e queria\npelejar com elle.\nE el-rei de Castella, como isto soube, disse que lhe n\u00e3o cumpria estar\nmais em terra, nem curar de cerco d'aquelle logar, pois todo o feito da\nguerra havia de haver fim por aquella batalha, em que os reis haviam de\nser por seus corpos. E fez logo recolher toda sua gente \u00e1 frota, e\nmetteu-se el-rei n'uma grande gal\u00e9, que f\u00f4ra dos mouros, que passava\nquarenta cavallos sob sota, e mandou fazer n'ella tres castellos de\nmadeira, um na p\u00f4pa e outro na pr\u00f4a, e um na metade, e p\u00f4z n'ella cento\ne sessenta homens d'armas e cento e vinte b\u00e9steiros. E partiu el-rei, de\nIvi\u00e7a, com toda sua frota, e veiu-se a um logar que dizem Calpe, e alli\nancoraram as naus e gal\u00e9s a cerca de terra, traz uma alta penha que ahi\nha, de guisa que se n\u00e3o podiam ver, salvo de perto.\nAs gal\u00e9s de Arag\u00e3o appareceram d'alli \u00e1 vella at\u00e9 duas leguas, pouco\nmais ou menos, dentro no mar, e eram quarenta sem outros navios, e n\u00e3o\nvinha el-rei n'ellas, c\u00e1 os seus n\u00e3o quizeram, e ficou em Mayorca. Ellas\nn\u00e3o haviam vista da frota de Castella, por aso d'aquella grande penha\nque as amparava; e vinham todas \u00e1 vella, n'esta ordenan\u00e7a: em meio\nd'ellas eram duas gal\u00e9s grossas, com castellos feitos de que pelejassem,\ne n'uma vinha o conde de Cardona, e n'outra Dom Bernardo de Cabrera,\nalmirante de Arag\u00e3o; e duas gal\u00e9s de guarda vinham diante por gr\u00e3o\nespa\u00e7o das outras; e muitas gentes de p\u00e9 e de cavallo, por terra, para\nas ajudarem se mister fizesse.\nAs duas gal\u00e9s, que vinham diante, como houveram vista das naus e frota\nde Castella, calaram as vellas e tomaram os remos; as outras todas, como\nisto viram, fizeram logo por aquella guisa por se ordenarem \u00e1 sua\nvontade; e sabendo parte das naus que ahi eram, de que houveram mui\ngrande receio, n\u00e3o as ousaram de attender no mar, e logo essa tarde, \u00e1\nhora de vespera, se metteram todas no rio de Denia.\nEl-rei Dom Pedro fez logo fazer todos os seus prestes, cuidando outro\ndia de haver batalha; e o mar era t\u00e3o sem vento que se n\u00e3o podia\naproveitar das naus; e havido seu conselho, em que eram desvairados\naccordos, determinou que pois a armada dos imigos jazia em tal rio, que\npor sua estreitura n\u00e3o podia pelejar com elles, que se fossem entanto\npara Alicante, por v\u00ear se quereriam depois pelejar.\nE el-rei como d'alli partiu com a sua frota, e as gal\u00e9s de Arag\u00e3o\nvieram-se lan\u00e7ar em Calpe, onde a frota de Castella jazera primeiro.\n*CAPITULO XXV*\n_Como se partiu o almirante de Portugal com as dez gal\u00e9s, e como el-rei\nDom Pedro desarmou a frota; e de outras cousas_.\nHavendo seis dias que el-rei de Castella estava em Alicante, e vendo que\na armada de Arag\u00e3o n\u00e3o apparecia, partiu d'aquelle logar e veiu-se para\nCartagena. E alli disse o almirante de Portugal a el-rei, que seu\nsenhor, el-rei de Portugal, lhe mand\u00e1ra que estivesse com aquellas suas\ndez gal\u00e9s tres mezes, onde quer que o elle mandasse, e que pois os tres\nmezes eram j\u00e1 passados, que n\u00e3o ousaria mais de estar alli, nem passaria\nmandado de seu senhor.\nEl-rei Dom Pedro, quando isto ouviu, pezou-lhe muito, c\u00e1 n\u00e3o quizera que\nt\u00e3o asinha partira, e n\u00e3o podendo fazer que se tivesse alli mais,\ndeu-lhe licen\u00e7a que se fosse.\nE como se as gal\u00e9s de Portugal partiram, accordou el-rei de deixar a\nfrota e ir-se por terra para Castella, e mandou as gal\u00e9s todas a\nSevilha, e deu logar \u00e1s n\u00e1us que se partissem, e elle veiu-se para\nOuterdesilhas, onde estava Dona Maria de Padilha, madre de seus filhos.\nAs gal\u00e9s de Arag\u00e3o, como souberam que el-rei de Castella desarmara a\nfrota, desarmaram elles trinta gal\u00e9s suas, e deixaram dez que andassem\npelo mar, por fazer damno a alguns navios de Portugal ou de Castella: e\nfoi assim que o fizeram a alguns, mas poucos por\u00e9m, e em pequenos\nnavios.\nN'esta ses\u00e3o, no mez de setembro, o conde Dom Henrique, e Dom Tello, seu\nirm\u00e3o, e alguns fidalgos e cavalleiros de Arag\u00e3o at\u00e9 oitocentos de\ncavallo, entraram por Castella por terra de Agreda, e Dom Fernando de\nCastro e Jo\u00e3o Fernandez de Hinestrosa, e outros, que estavam na\nfronteira da comarca de Alma\u00e7an, com uns mil e quinhentos de cavallo,\nsairam a elles. E foi de tal guisa que pelejaram a cerca de Moncayo. E\nfoi vencido Dom Fernando de Castro, e morto Jo\u00e3o Fernandez de\nHinestrosa, e outros bons fidalgos, e preso Inigo Lopez de Orosco, e\noutros.\nA el-rei Dom Pedro pezou d'isto muito, e seus inimigos cobraram grande\nesfor\u00e7o; e mandou n'este anno matar em Carmona, onde estavam presos, Dom\nJo\u00e3o e Dom Pedro, seus irm\u00e3os, filhos d'el-rei Dom Affonso seu padre, e\nde Dona Leonor Nunez de Guzman: era Dom Pedro de quartoze annos, e Dom\nJo\u00e3o de dezenove, mo\u00e7os innocentes que nunca lhe mal mereceram.\nE por aso d'estas mortes, e outras muitas que tendes ouvido, era el-rei\nDom Pedro t\u00e3o mal quisto de todos, e havendo d'elle tamanho medo, que\npor ligeira cousa se partiam d'elle, e se iam a Arag\u00e3o para o conde Dom\nHenrique. Assim como fez Diego Perez Sarmento, e Pero Fernandez de\nVelasco, e outros, com muitas gentes que comsigo levaram; em tanto, que\no conde disse a el-rei de Arag\u00e3o que se quizesse ordenar uma boa\ncompanhia de gente, que elle entraria com elles por Castella, e que\nentendia de n\u00e3o achar quem lhe puzesse a pra\u00e7a: e quizera el-rei, de\nboamente, que se fizera, mas que levara o infante Dom Fernando, seu\nirm\u00e3o, a capitania d'elles, e o conde Dom Henrique n\u00e3o quiz, e por tanto\nse n\u00e3o fez d'aquella vezada.\n*CAPITULO XXVI*\n_Como o cardeal de Bolonha quizera tratar paz entre os reis e n\u00e3o poude,\ne como as gentes d'el-rei Dom Pedro pelejaram com o conde e o\ndesbarataram_.\nTendo o cardeal de Bolonha, que andava em Arag\u00e3o por avir estes reis,\ncomo el-rei Dom Pedro havia perdida parte de sua gente n'aquella batalha\nque houvera o conde Dom Henrique com Dom Fernando de Castro, e como se\nalguns cavalleiros partiam d'elle, e se iam para Arag\u00e3o, teve que, por\nestas e outras raz\u00f5es, elle se chegaria a alguma boa aven\u00e7a para haver\npaz com el-rei de Arag\u00e3o, e fez saber a ambos os reis se lhes prazeria\nde falar mais n'isto, e outorgou cada um que sim.\nO cardeal se veiu ent\u00e3o para Tudella, que \u00e9 do reino de Navarra, e\nchegou ahi Guterre Fernandez de Toledo por procurador d'el-rei de\nCastella, e Dom Bernardo de Cabrera, procurador d'el-rei de Arag\u00e3o, e\nestiveram por dias, e n\u00e3o se avieram.\nEl-rei Dom Pedro, como isto soube, partiu de Sevilha para Leon, por\nquanto lhe disseram que o conde Dom Henrique, e Dom Tello, e outros\nsenhores de Arag\u00e3o, se juntavam para entrar por Castella; e d'alli\npartiu, e veiu a Valhadolid, sabendo como j\u00e1 eram entradas aquellas\ngentes em seu reino, e mataram os judeus de Najara e d'outros logares, e\nroubavam as judiarias. E o conde chegou a Pancorvo e assocegou ahi\nalguns dias, e depois se partiu para Najara, e el-rei foi all\u00e1 com seu\npoder, e pousou em um logar que chamam Acofra.\nE alli chegou a elle um clerigo de missa, natural de S\u00e3o Domingos da\nCal\u00e7ada, e contou-lhe que S\u00e3o Domingos lhe dissera, em sonhos, que\nviesse a elle e lhe dissess\u00e9 que fosse certo que n\u00e3o se guardando do\nconde Dom Henrique, que elle o havia de matar por sua m\u00e3o. E el-rei\ncuidou que o clerigo lh'o dizia por induzimento, pero o clerigo dizia\nque n\u00e3o, e mandou-o queimar ante si.\nE partiu el-rei uma sexta-feira para Najara, onde o conde estava, e elle\nera f\u00f3ra da villa com oitocentos de cavallo e dois mil homens de p\u00e9. E\nmandara p\u00f4r o conde, ante a villa, n'um outeiro, uma tenda e um pend\u00e3o;\ne os d'el-rei que iam diante pelejaram com o conde e venceram-no, e\ntomaram a tenda e o pend\u00e3o, e morreram ahi parte dos seus. E partiu-se\nel-rei, \u00e1 tarde, para Acofra, onde tinha seu arrayal.\nE em outro dia, vindo para combater Naj\u00e1ra, onde ficara o conde, achou\nno caminho um escudeiro que vinha fazendo pranto por um seu tio que lhe\nmataram, e el-rei houve-o por forte signal e n\u00e3o quiz l\u00e1 ir, e tornou-se\npara S\u00e3o Domingos da Cal\u00e7ada.\nE d'ahi a dois dias lhe disseram que era partido o conde para Arag\u00e3o,\nlevando caminho de Navarra, e quizera-o el-rei seguir, e o cardeal lhe\nconselhou que o n\u00e3o fizesse, c\u00e1 assaz abundava deixarem-lhe suas villas\ne irem-se. E el-rei mandou aos seus que estivessem quedos, e d'aquelle\nlogar ordenou seus fronteiros para os logares onde cumpria, e veiu-se\npara Sevilha.\nElle alli soube como um cavalleiro de Arag\u00e3o, que chamavam Mateo\nMercedi, andava no mar com quatro gal\u00e9s fazendo damno a castelhanos e a\nportuguezes, e fez armar cinco gal\u00e9s, e mandou n'ellas um seu b\u00e9steiro,\nque diziam Zorzo, natural de Tartaria, que fosse em busca d'aquelle\ncorsario; e foi assim que o achou na costa da Berberia, onde pelejou com\nelle, e desbaratou-o e trouxe as gal\u00e9s e elle preso a Sevilha: e el-rei\nmandou-o matar, e muitos dos que vinham com elle.\nMas ora deixemos el-rei em Sevilha, matando e prendendo quaes vos depois\ncontaremos, e digamos algumas outras cousas que este anno aconteceram em\nPortugal, que nos parece que \u00e9 bem que saibaes.\n*CAPITULO XXVII*\n_Como el-rei Dom Pedro de Portugal disse por Dona Ignez que fora sua\nmulher recebida, e da maneira que em ello teve_.\nJ\u00e1 tendes ouvido compridamente, onde falamos da morte de D. Ignez, a\nraz\u00e3o por que a el-rei Dom Affonso matou, e o grande desvairo que entre\nelle e este rei Dom Pedro, sendo ent\u00e3o infante, houve por este aso. Ora,\nassim \u00e9, que emquanto Dona Ignez foi viva, nem depois da morte d'ella\nemquanto el-rei seu padre viveu, nem depois que elle reinou at\u00e9 este\npresente tempo, nunca el-rei Dom Pedro a nomeou por sua mulher; antes\ndizem que muitas vezes lhe enviava el-rei Dom Affonso perguntar se a\nrecebera, e honral-a-ia como sua mulher, e elle respondia sempre que a\nn\u00e3o recebera, nem o era.\nE pousando el-rei, n'esta ses\u00e3o, no logar de Cantanhede, no mez de\njunho, havendo j\u00e1 uns quatro annos que reinava, tendo ordenado de a\npublicar por mulher, estando ante elle Dom Jo\u00e3o Affonso conde de\nBarcellos, seu mordomo-m\u00f3r, e Vasco Martins de Sousa, seu chanceller, e\nmestre Affonso das leis e Jo\u00e3o Esteves, privados, e Martim Vasques,\nsenhor de Goes, e Gon\u00e7alo Mendes de Vasconcellos, e Jo\u00e3o Mendes, seu\nirm\u00e3o, e Alvaro Pereira, e Gon\u00e7alo Pereira, e Diego Gomes, e Vasco Gomes\nde Abreu, e outros muitos que dizer n\u00e3o curamos, fez el-rei chamar um\ntabelli\u00e3o, e presentes todos, jurou aos Evangelhos, por elle\ncorporalmente tangidos, que sendo elle infante, vivendo ainda el-rei seu\npadre, que estando elle em Bragan\u00e7a, podia haver uns sete annos, pouco\nmais ou menos, n\u00e3o se accordando do dia e mez, que elle recebera por sua\nmulher lidima, por palavras de presente, como manda a santa igreja, Dona\nIgnez de Castro, filha que foi de D. Pedro Fernandez de Castro, e que\nessa Dona Ignez recebera a elle por seu marido, por semelhaveis\npalavras, e que depois do dito recebimento a tivera sempre por sua\nmulher, at\u00e9 ao tempo de sua morte, vivendo ambos de commum, e fazendo-se\nmaridan\u00e7a qual deviam.\nE disse ent\u00e3o el-rei Dom Pedro, que porquanto este recebimento n\u00e3o f\u00f4ra\nexemplado nem claramente sabido a todos os de seu senhorio, em vida do\ndito seu padre, por temor e receio que d'elle havia, que por\u00e9m elle, por\ndescarregar sua consciencia e dizer verdade, e n\u00e3o ser duvida a alguns,\nque do dito recebimento tinham n\u00e3o boa suspeita se f\u00f4ra assim ou n\u00e3o:\nque elle dava de si f\u00e9 e testemunho de verdade, que assim se passara de\nfeito como dito havia, e mandou \u00e1quelle tabelli\u00e3o, que presente estava,\nque d\u00e9sse d'ello instrumentos a quaesquer pessoas que lh'os requeressem.\nE por ent\u00e3o n\u00e3o se fez mais.\n*CAPITULO XXVIII*\n_Do testemunho que alguns deram no casamento de Dona Ignez, e das raz\u00f5es\nque sobre ello propoz o conde Dom Jo\u00e3o Affonso_.\nPassados trez dias que isto foi, chegaram a Coimbra Dom Jo\u00e3o Affonso\nconde de Barcellos, e Vasco Martins de Sousa, e mestre Affonso das leis,\ne no pa\u00e7o onde ent\u00e3o liam de decretaes, sendo o estudo n'essa cidade,\npresente um tabelli\u00e3o, chamaram duas testemunhas, a saber, Dom Gil, que\nent\u00e3o era bispo da Guarda, e Estevam Lobato, criado d'el-rei, aos quaes\ndisseram que, por juramento dos Evangelhos, dissessem a verdade do que\nsabiam em feito do casamento d'el-rei Dom Pedro com Dona Ignez. E\nperguntado cada um per si \u00e1parte, o bispo disse primeiramente, que\nandando elle com o dito senhor, e sendo ent\u00e3o de\u00e3o da Guarda, que\nn'aquelle tempo, sendo el-rei infante, e Dona Ignez com elle, pousavam\nna villa de Bragan\u00e7a, e que esse senhor o mandara chamar um dia \u00e1 sua\ncamara, sendo Dona Ignez presente, e que lhe dissera que a queria\nreceber por sua mulher, e que logo, sem mais deten\u00e7a, o dito senhor\npuzera a m\u00e3o nas suas d'elle, e isso mesmo a dita Dona Ignez, e que os\nrecebera ambos por palavras de presente, como manda a santa igreja de\nRoma, e que os vira viver de commum at\u00e9 \u00e1 morte d'essa Dona Ignez; e que\nisto poderia haver sete annos, pouco mais ou menos, mas que n\u00e3o se\naccordava do dia e mez em que f\u00f4ra: e d'este feito n\u00e3o disse mais.\nSemelhavelmente foi perguntado Estevam Lobato, e disse que sendo el-rei\ninfante e pousando em Bragan\u00e7a, que o mandara chamar \u00e1 sua camara, e que\nlhe dissera que o mandara chamar porque sua vontade era de receber Dona\nIgnez, que presente estava, e que queria que fosse d'ello testemunha: e\nque o de\u00e3o da Guarda, que j\u00e1 ahi estava, e outrem n\u00e3o, tomara o dito\nsenhor por uma m\u00e3o e ella por outra, e que ent\u00e3o os recebera ambos por\naquellas palavras que se costumam dizer em taes desposorios, e que os\nvira viver juntamente at\u00e9 ao tempo da morte d'ella; e que isto f\u00f4ra em\num primeiro dia de janeiro, podia haver sete annos, pouco mais ou menos.\nTanto que estes foram perguntados e escripto seu dito, segundo ouvistes,\nfizeram logo juntar, que para isto j\u00e1 estavam presentes, Dom Louren\u00e7o,\nbispo de Lisboa, e Dom Affonso, bispo do Porto, e Dom Jo\u00e3o, bispo de\nVizeu, e Dom Affonso, prior de Santa Cruz d'esse logar, e todos os\nfidalgos antes nomeados, com outros muitos que n\u00e3o dizemos, e os\nvigarios, e clerezia, e muito outro povo assim ecclesiastico como\nsecular, que se para isto alli juntou. E feito silencio, a bem escutar,\ncome\u00e7ou a dizer o conde Dom Jo\u00e3o Affonso:\nAmigos, deveis de saber que el-rei, nosso senhor que ora \u00e9, sendo\ninfante, passa j\u00e1 de uns sete annos, estando ent\u00e3o na villa de Bragan\u00e7a,\nsendo el-rei Dom Affonso, seu padre, vivo, recebeu por sua mulher\nlidima, por palavras de presente, Dona Ignez de Castro, filha que foi de\nDom Pedro Fernandez de Castro, e ella isso mesmo recebeu a elle, e\nsempre a o dito senhor teve depois por sua mulher, fazendo-se maridan\u00e7a\num ao outro, qual deviam, at\u00e9 ao tempo da sua morte. E porquanto estes\nrecebimentos e casamento n\u00e3o foi exemplado a todos os do reino em vida\ndo dito rei Dom Affonso, por medo e receio que seu filho d'elle havia,\ncasando de tal guisa sem seu mandado e consentimento, por\u00e9m agora\nel-rei, nosso senhor, por desencarregar sua alma e dizer verdade e n\u00e3o\nser duvida a alguns que d'este casamento parte n\u00e3o sabiam se f\u00f4ra assim\nou n\u00e3o, fez juramento sobre os santos Evangelhos e deu de si f\u00e9 e\ntestemunho de verdade, que foi d'esta guisa que o eu digo, segundo\nvereis por um instrumento que d'isto tem feito Gon\u00e7alo Peres, tabelli\u00e3o,\nque aqui est\u00e1; e mais vereis o dito do bispo da Guarda e de Estevam\nLobato, que aqui est\u00e3o, que foram presentes no dito casamento.\nEnt\u00e3o lhe fez cumpridamente l\u00ear todo o testemunho que ambos sobre ello\nderam.\n\u00abE porque vontade d'el-rei, nosso senhor (disse elle) \u00e9 que isto n\u00e3o\nseja mais encoberto, antes lhe praz que o saibam todos, por ser arredada\ngrande duvida que sobre ello adiante poderia recrescer, por\u00e9m me mandou\nque vos notificasse tudo isto, por tirar suspeita de vossos cora\u00e7\u00f5es, e\nser a todos claramente sabido. Mas porque n\u00e3o embargando tudo o que eu\ndisse, e vos ora aqui foi lido e declarado, alguns poder\u00e3o dizer que\ntudo isto n\u00e3o bastava se ahi dispensa\u00e7\u00e3o n\u00e3o houve, por o gr\u00e3o divido\nque entre elles havia, sendo ella sobrinha d'el-rei nosso senhor, filha\nde seu primo coirm\u00e3o, por\u00e9m me mandou que vos certificasse de tudo, e\nvos mostrasse esta bulla que houve em sendo infante, em que o papa\ndispensou com elle, que pudesse casar com toda mulher, posto que lhe\nchegada fosse em parentesco, tanto e mais como Dona Ignez era a elle\u00bb.\nEnt\u00e3o publicaram perante todos uma letra do papa Jo\u00e3o XXII, que dizia em\nesta guisa:\n\u00abJo\u00e3o, bispo, servo dos servos de Deus. Ao muito amado, em Christo,\nfilho infante Dom Pedro, primogenito do muito amado, em Christo nosso\nfilho mui claro rei de Portugal e do Algarve Affonso, saude e\napostolical ben\u00e7\u00e3o. Se o rigor dos santos canones p\u00f5e defeza e\ninterdicto sobre a copula do matrimonial ajuntamento, querendo que se\nn\u00e3o fa\u00e7a entre aquelles que por algum divido de parentesco s\u00e3o\nconjunctos, por guarda da publica honestidade; aquelle por\u00e9m que \u00e9 \u00e1s\nvezes bispo de Roma, de poderio absoluto, em lugar de Deus dispensando,\npode por especial gra\u00e7a p\u00f4r temperan\u00e7a sobre tal rigor. E por\u00e9m n\u00f3s,\ndemovido \u00e1cerca de tua pessoa com especial favor, por algumas raz\u00f5es, de\nque ao diante esperamos paz e folgan\u00e7a n'esses reinos, querendo\ncondescender a tuas preces e de el-rei Dom Affonso, teu padre, que por\nsuas letras por ti a n\u00f3s humildosamente supplicou, para casares com\nqualquer nobre mulher, devota \u00e1 santa igreja de Roma, ainda que por\nlinha transversa de uma parte no segundo grau e d'outra no terceiro,\nsejaes dividos e parentes, e isso mesmo ainda, que por raz\u00e3o de outras\nduas linhas collateraes, seja embargo de parentesco ou cunhadia entre\nv\u00f3s no quarto grau, licitamente por matrimonio vos podeis ajuntar: n\u00f3s,\npor apostolica auctoridade, de especial gra\u00e7a, tudo tiramos e removemos,\ndispensando comtigo e com aquella com que assim casares, de nosso\napostolico poderio, que a gera\u00e7\u00e3o que de v\u00f3s ambos nascer ser legitima\nsem outro impedimento. Por\u00e9m, nenhum homem seja ousado presump\u00e7osamente\ncontra esta nossa dispensas\u00e3o ir, de outra guisa seja certo na ira e\nsanha do todo poderoso Deus, e dos bem aventurados S\u00e3o Pedro e S\u00e3o\nPaulo, apostolos, incorrer. D'ante em Avinh\u00e3o, duodecimo Kalendas de\nmar\u00e7o, do nosso pontificado anno nono.\u00bb\nAcabada de l\u00ear assim esta letra, disse ent\u00e3o o conde, presente elles\ntodos, que elle por guarda e em nome dos infantes Dom Jo\u00e3o, e Dom Diniz,\ne Dona Beatriz, filhos que eram dos ditos senhores, queria tomar sendos\ninstrumentos para cada um d'elles, e requereu ao tabelli\u00e3o que assim\nlh'os desse.\nPartiram-se ent\u00e3o todos para as pousadas, n\u00e3o minguando a cada um\nraz\u00f5es, que fossem entre si falando sobre esta historia.\n*CAPITULO XXIX*\n_Raz\u00f5es contra isto, de alguns que ahi estavam, duvidando muito neste\ncasamento_.\nAcabadas raz\u00f5es que ouvistes, ditas, presentes letrados e outro muito\npovo, aquelles que, de ch\u00e3o e simples entender eram, n\u00e3o esquadrinhando\nbem o tecimento de taes cousas, ligeiramente lhe deram f\u00e9, outorgando\nser verdade tudo aquillo que alli ouviram. Outros, mais subtis de\nentender, letrados e bem discretos, que os termos de tal feito mui\ndelgado investigaram, buscando se aquillo que ouviam podia ser verdade,\nou pelo contrario, n\u00e3o receberam isto em seus entendimentos\nparecendo-lhe de tudo ser muito contra raz\u00e3o. C\u00e1 porque o cr\u00ear da cousa\nouvida est\u00e1 na raz\u00e3o e n\u00e3o na vontade, porende o prudente homem que tal\ncousa ouve, que sua raz\u00e3o n\u00e3o quer conceber, logo se maravilha,\nduvidando muito. E por\u00e9m, foram assaz, dos que alli estiveram, de tal\nhistoria n\u00e3o mui contentes, vendo que aquillo que lhe f\u00f4ra proposto\nnenhum alicerce tinha de raz\u00e3o. E se alguns perguntar quizerem por que\ntaes presumiam ser tudo fingido, as raz\u00f5es d'elles, que nos bem claras\nparecem, sejam resposta \u00e1 sua pergunta, dizendo os que tinham a parte\ncontraria, contra aquelles que defendiam ser tudo verdade, suas raz\u00f5es,\nn'esta maneira.\nN\u00e3o quizeram consentir os antigos que nenhum razoado homem, sendo em sua\nsaude e inteiro siso, se pudesse d'elle tanto assenhorear o\nesquecimento, que toda a cousa notavel passada, sempre d'ella n\u00e3o\nhouvesse relembran\u00e7a.\nAllegando, aquelle claro lume da philosophia, Aristoteles, em um breve\ntratado que d'isto compoz, o porque de todas causas presentes, ou que\ns\u00e3o por vir, n\u00e3o cumpre haver nenhuma memoria; ergo, das causas\npassadas, que j\u00e1 aconteceram, era necessaria a relembran\u00e7a: dizendo que\na memoria \u00e9 dita, quando a imagem vista, ou ouvida, de alguma causa do\nhomem, \u00e9 sempre presente na virtude memorativa, e reminiscencia \u00e9,\nquando alguma causa, feita ou ouvida, saiu da virtude memorativa e\ndepois torna a lembrar, por v\u00ear outra semelhante causa.\nAssim como, se eu casei, ou me foi feita uma gram merc\u00ea, ou fui chamado\na um gram conselho em um dia de paschoa ou janeiro, ou outro dia\nassignado do anno, e depois me vem a esquecer, n\u00e3o o tendo sempre\npresente na memoria:--vendo depois outra b\u00f4da, ou alguma das causas que\nme advieram, em semelhante dia, lembrar-me-ha ent\u00e3o que casei em dia de\npaschoa, ou outra qualquer cousa que me adveiu, se vejo alguma cousa\nsemelhante, ou m'a perguntarem. Porque conv\u00e9m que me lembre o dia e a\ncousa, posto que me esque\u00e7a o conto dos annos ou dos dias em que foi. Ou\ndiziam que tornava ainda a lembrar por outra contraria maneira, assim\ncomo, se eu casei em dia de paschoa e depois de alguns annos morreu-me a\nmulher em outro dia tal,--ou houve gram prazer em dia de natal, e depois\ngram nojo em semelhante dia,--necesario \u00e9 que me lembre o prazer\nprimeiro, posto que me o conto dos dias esque\u00e7a, porque \u00e9 cousa que n\u00e3o\ncausa disposi\u00e7\u00e3o na memoria. Por\u00e9m, o dia assignado em que me tal cousa\nadveiu, nunca se tira, de todo o ponto, que depois n\u00e3o torne a lembrar\ncumpridamente, porque tal dia \u00e9 da essencia da relembran\u00e7a, e o processo\ndo tempo, n\u00e3o. E por\u00e9m, n\u00e3o \u00e9 cousa que possa ser, estando homem em sua\nsaude, que lhe cousa notavel esque\u00e7a, posto que lhe o conto dos dias\nesque\u00e7a, que \u00e9 transitorio, e n\u00e3o da essencia do lembramento.\nPois como pode cahir em entendimento de homem, diziam elles, que um\ncasamento t\u00e3o notavel como este, e que tantas raz\u00f5es tinha para ser\nlembrado, houvesse, em t\u00e3o pequeno espa\u00e7o, de esquecer, assim \u00e1quelle\nque o fez, como os que foram presentes, n\u00e3o lhe lembrando o dia nem o\nmez?\nCertamente, buscada a verdade d'este feito, a raz\u00e3o n'isto n\u00e3o consente;\nc\u00e1, deixadas as raz\u00f5es, que ahi havia, para se el-rei lembrar bem quando\nf\u00f4ra, assim como a tomada de Dona Ignez e o grande desvairo que por tal\nazo houve com seu padre, d\u00eas-ahi o grande tempo que tardou antes que o\nfizesse, e a gram delibera\u00e7\u00e3o com que se moveu a o fazer, e o segredo em\nque o poz \u00e1quelles que dizem que foram presentes; deixando tudo isto,\ns\u00f3mente por ser feito em dia de janeiro que \u00e9 primeiro dia do anno,\nsegundo disse Estev\u00e3o Lobato, demais, festa t\u00e3o assignada no pa\u00e7o do\ninfante e por todo o reino, isto s\u00f3 era bastante assaz para ser lembrado\no dia em que a recebera, posto que longo processo de annos houvesse.\nOutra raz\u00e3o notavam ainda a tudo o que ouviram parecer fingido, dizendo\nque, se el-rei dava em seu testemunho que, com temor e receio de seu\npadre, n\u00e3o ousara descobrir este casamento em sua vida d'elle, quem lhe\ntolhera, depois que el-rei morreu, que o logo n\u00e3o notificara, sendo em\nseu livre poder, pois lhe tanto prazia de ser sabido?\nE mais diziam, que este feito queria parecer semelhante a el-rei Dom\nPedro de Castella, que posto que, elle mandasse matar Dona Branca, sua\nmulher, em quanto Dona Maria de Padilha foi viva, que elle tinha por sua\nmanceba, nunca lhe nenhum ouviu dizer que ella fosse sua mulher, e\ndepois que ella morreu, em umas c\u00f4rtes que fez em Sevilha, alli\ndeclarou, perante todos, que primeiro cas\u00e1ra com ella que com Dona\nBranca, nomeando quatro testemunhas que foram presentes, os quaes por\njuramento certificaram logo que assim f\u00f4ra como elle dizia, e desde\nent\u00e3o mandou elle que lhe chamassem rainha, posto que j\u00e1 fosse morta, e\naos filhos infantes; e fez logo a todos fazer menagem, a um filho que\nd'ella houvera, que chamavam Dom Affonso, que o tomassem por rei depoz\nsua morte.\nE por\u00e9m diziam os que estas e outras raz\u00f5es secretamente entre si\nfalavam, que a verdade n\u00e3o busca cantos, muito encoberta andava em taes\nfeitos. Assim que, porque o entender \u00e9 disposto sempre para obedecer \u00e1\nraz\u00e3o, muitos que ent\u00e3o isto ouviram deixaram de crer o que antes criam,\ne pegaram-se a este arrazoado; mas n\u00f3s, que n\u00e3o por determinar se foi\nassim ou n\u00e3o, como elles disseram, mas s\u00f3mente por ajuntar em breve o\nque os antigos notaram em escripto, puzemos aqui parte de seu arrazoado,\ndeixamos cargo, ao que isto l\u00ear, que d'estas opini\u00f5es escolha qual\nquizer.\n*CAPITULO XXX*\n_Como os reis de Portugal e de Castella fizeram entre si aven\u00e7a, que\nentregassem, um ao outro, alguns que andavam seguros em seus reinos_.\nPorque o fructo principal da alma, que \u00e9 a verdade, pela qual todas as\ncousas est\u00e3o em sua firmeza,--e ella ha de ser clara, e n\u00e3o fingida,\nm\u00f3rmente nos reis e senhores, em que mais resplandece qualquer virtude\nou \u00e9 feio o seu contrario,--houveram as gentes por mui gr\u00e3o mal, um\nmuito de aborrecer escambo que este anno entre os reis de Portugal e\nCastella foi feito: em tanto que, posto que escripto achemos, de el-rei\nde Portugal, que a toda a gente era mantenedor de verdade, nossa ten\u00e7\u00e3o\n\u00e9 n\u00e3o o louvar mais, pois contra seu juramento foi consentidor em t\u00e3o\nfeia cousa como esta.\nOnde assim adveiu, segundo dissemos, que na morte de Dona Ignez, que\nel-rei Dom Affonso pae de el-rei Dom Pedro de Portugal, sendo ent\u00e3o\ninfante, mandou matar em Coimbra, foram mui culpados pelo infante, Diogo\nLopes Pacheco, e Pero Coelho, e Alvaro Gon\u00e7alves, seu meirinho-m\u00f3r, e\noutros muitos que elle culpou; mas assignadamente contra estes tres teve\no infante mui grande rancura. E fallando verdade, Alvaro Gon\u00e7alves e\nPero Coelho eram n'isto assaz de culpados, mas Diogo Lopes, n\u00e3o, porque\nmuitas vezes mandara perceber o infante, por Gon\u00e7alo Vasques, seu\nprivado, que guardasse aquella mulher da sanha d'el-rei seu padre.\nPero, depois de tudo isto, foi el-rei de accordo com o infante seu\nfilho, e perdoou o infante a estes e a outros em que suspeitava, e isso\nmesmo perdoou el-rei, aos do infante, todo o queixume que d'elles havia,\ne foram, sobre isto, grandes juramentos e promessas feitas, como\ncumpridamente tendes ouvido: e viviam assim seguros, Diogo Lopes e os\noutros, no reino, em quanto el-rei Dom Affonso viveu.\nE sendo el-rei doente, em Lisboa, da d\u00f4r de que se ent\u00e3o finou, fez\nchamar Diogo Lopes Pacheco e outros, e disse-lhe que elle sabia bem que\no infante Dom Pedro, seu filho, lhe tinha m\u00e1 vontade, n\u00e3o embargando as\njuras e perd\u00e3o que fizera, da guisa que elles bem sabiam; e que,\nporquanto se elle sentia mais chegado \u00e1 morte que \u00e1 vida, que lhes\ncumpria, de se p\u00f4rem em salvo f\u00f3ra do reino, porque elle n\u00e3o estava j\u00e1\nem tempo de os poder defender d'elle, se lhe algum nojo quizesse fazer.\nE elles se partiram logo de Lisboa, e se foram para Castella, andando\nent\u00e3o o infante Dom Pedro ao monte, al\u00e9m do Tejo, em uma ribeira que\nchamam de Canha, que s\u00e3o oito leguas da cidade: e el-rei de Castella os\nrecebeu de bom geito, e haviam d'elle bem fazer, e merc\u00ea, vivendo em seu\nreino seguros e sem receio.\nE depois que o infante Dom Pedro reinou, deu senten\u00e7a de trai\u00e7\u00e3o contra\nelles, dizendo que fizeram contra elle, e contra seu estado, cousas que\nn\u00e3o deviam de fazer; e deu os bens de Pero Coelho a Vasco Martins de\nSousa, rico-homem, e seu chanceller-m\u00f3r, e os de Alvaro Gon\u00e7alves e\nDiogo Lopes a outras pessoas, como lhe prouve. E fez el-rei, em alguns\nd'estes bens, tantas e taes bemfeitorias, e outras repartio em tantas\npartes, que depois que elle morresse nunca os mais podessem haver\naquelles cujos foram, nem tirar \u00e1quelles a que os assim dava.\nSemelhavelmente, fugiram de Castella, n'esta ses\u00e3o, com temor de el-rei,\nque os mandava matar, Dom Pedro Nunez de Guzman, adeantado-m\u00f3r da terra\nde Le\u00e3o, e Mem Rodrigues Tenorio, e Fern\u00e3o Godiel de Toledo, e Fern\u00e3o\nSanchez Calderon, e viviam em Portugal, na merc\u00ea de el-rei Dom Pedro,\ncrendo n\u00e3o receber damno, tambem os portuguezes como os castelhanos,\nporque razoada f\u00e9 lhes dera ousado acoutamento nas fraldas da seguran\u00e7a,\na qual--n\u00e3o bem guardada pelos reis--fizeram calladamente uma tal\naven\u00e7a, que el-rei de Portugal entregasse presos, a el-rei de Castella,\nos fidalgos que em seu reino viviam, e que elle, outrosim, lhe\nentregaria Diogo Lopes Pacheco, e os outros ambos que em Castella\nandavam. E ordenaram que fossem todos presos em um dia, por que a pris\u00e3o\nde uns n\u00e3o fosse avisamento dos outros, e que aquelles que levassem\npresos os castelhanos at\u00e9 ao extremo do reino, recebessem os portuguezes\nque trouxessem de Castella.\n*CAPITULO XXXI*\n_Como Diogo Lopes Pacheco escapou de ser preso, e foram entregues os\noutros, e logo mortos cruelmente_.\nFeito aquelle tracto d'esta maneira, foram em Portugal presos os\nfidalgos que dissemos.\nE n'aquelle dia que o recado de el-rei de Castella chegou ao lugar, onde\nDiogo Lopes e os outros estavam, para haverem de ser presos, aconteceu\nque essa manh\u00e3 muito cedo f\u00f4ra Diogo Lopes \u00e1 ca\u00e7a dos perdig\u00f5es. E\npresos Pero Coelho e Alvaro Gon\u00e7alves, quando foram buscar Diogo Lopes,\nacharam que n\u00e3o era no logar, e que se f\u00f4ra pela manh\u00e3 \u00e1 ca\u00e7a.\nCerraram ent\u00e3o as portas da villa, que nenhum lhe levasse recado para o\nperceber, e attendiam-no assim, estando para o tomar \u00e1 vinda.\nUm pobre manco, que sempre em sua casa havia esmola quando Diogo Lopes\ncomia, e com quem algumas vezes jogueteava, viu estas cousas como se\npassaram, e cuidou de o avisar no caminho antes que chegasse ao logar, e\nsoube escusadamente contra qual parte Diogo Lopes f\u00f4ra, e chegou \u00e1s\nguardas da porta que o deixassem sair f\u00f4ra, e elles, de tal homem\nnenhuma cousa suspeitando, abrindo a porta o deixaram ir.\nAndou elle, quanto poude, por onde entendeu que Diogo Lopes viria, e\nachou-o j\u00e1 vir com seus escudeiros, mui desegurado das novas que lhe\nelle levava. E dizendo o pobre a Diogo Lopes que lhe queria falar,\nquizera-se elle escusar de o ouvir, como quem pouco suspeitava que lhe\ntrazia tal recado.\nAfincando-se o pobre que o ouvisse, contou-lhe ent\u00e3o \u00e1parte como uma\nguarda de el-rei de Castella, com muitas gentes, chegaram a seu pa\u00e7o\npara o prender, depois que os outros foram presos, e isso mesmo de que\nguisa as portas eram guardadas, por que nenhum saisse para o avisar.\nDiogo Lopes, como isto ouviu, bem lhe deu a vontade o que era, e medo de\nmorte o fez torvar todo, e p\u00f4r em gr\u00e3o pensamento.\nE o pobre lhe disse, quando o assim viu:--Cr\u00ea-de-me de conselho, e\nser-vos-ha proveitoso: apartae-vos dos vossos, e vamos a um valle n\u00e3o\nlonge d'aqui, e alli vos direi a maneira como vos ponhaes em salvo.\nEnt\u00e3o disse Diogo Lopes aos seus que andassem por alli a perto ca\u00e7ando,\nc\u00e1 elle s\u00f3 queria ir com aquelle pobre a um valle, onde lhe dizia que\nhavia muitos perdig\u00f5es.\nFizeram-no assim, e foram-se ambos \u00e1quelle logar, e alli lhe disse o\npobre, se escapar queria, que vestisse os seus saios rotos, e assim, de\np\u00e9, andasse quanto podesse at\u00e9 \u00e1 entrada que ia para Arag\u00e3o, e que com\nos primeiros almocreves que achasse, se mettesse de soldada, e assim,\ncom elles de volta, andasse seu caminho, e por esta guisa, ou em um\nhabito de frade, se o depois haver pudesse, se puzesse em salvo no reino\nde Arag\u00e3o, c\u00e1 por for\u00e7a havia de ser buscado pela terra.\nDiogo Lopes tornou seu conselho, e foi-se de p\u00e9, d'aquella maneira, e o\npobre n\u00e3o tornou logo para a villa. Os seus aguardaram por mui grande\nespa\u00e7o; e vendo que n\u00e3o vinha, foram-no buscar contra onde elle f\u00f4ra: e\nandando em sua busca, acharam a besta andar s\u00f3, e cuidaram que caira\nd'ella, ou lhe fugira, e buscaram-no com maior cuidado.\nFoi a deten\u00e7a, em isto, t\u00e3o grande, que se fazia j\u00e1 muito tarde, e vendo\ncomo o achar n\u00e3o podiam, levaram a besta e foram-se ao lugar, n\u00e3o\nsabendo que cuidassem em tal feito. E quando chegaram, e viram de que\nguisa o aguardavam, e souberam da pris\u00e3o dos outros, ficaram mui\nespantados, e logo cuidaram que era fugido: e perguntados por elle,\ndisseram que ca\u00e7ando s\u00f3, se perdera d'elles, e que buscando-o acharam a\nbesta e n\u00e3o a elle, e que n'aquillo foram detidos at\u00e9 \u00e1quellas horas, e\nque n\u00e3o sabiam que cuidassem, sen\u00e3o que jazia em algum logar morto. Os\nque cuidado tinham de o prender, foram-no buscar por desvairadas partes.\nE do que lhe adveiu no caminho, e como passou por Arag\u00e3o, e se foi a\nFran\u00e7a para o conde Dom Henrique, e de que guisa lhe fez roubar os\ncampos de Avinh\u00e3o, e de outras cousas que lhe advieram, n\u00e3o curamos de\ndizer mais, por n\u00e3o sair f\u00f3ra de proposito.\nQuando el-rei de Castella soube que Diogo Lopes n\u00e3o f\u00f4ra tomado, houve\ngr\u00e3o queixume e n\u00e3o poude mais fazer: ent\u00e3o enviou Alvaro Gon\u00e7alves e\nPero Coelho, bem presos e arrecadados, a el-rei de Portugal, seu tio,\nsegundo era ordenado entres elles. E quando chegaram ao extremo, acharam\nahi Mem Rodriguez Tenorio, e os outros castelhanos, que lhe el-rei Dom\nPedro enviava. E alli dizia depois Diogo Lopes, falando n'esta historia,\nque se fizera o troco de burros por burros.\nE foram levados a Sevilha, onde el-rei ent\u00e3o estava, aquelles fidalgos\nque j\u00e1 nome\u00e1mos, e alli os mandou el-rei matar a todos.\nA Portugal foram trazidos Alvaro Gon\u00e7alves e Pero Coelho, e chegaram a\nSantarem, onde el-rei era. El-rei, com prazer de sua vinda, por\u00e9m mal\nmagoado porque Diogo Lopes fugira, os saiu f\u00f3ra a receber, e, sanha\ncruel, sem piedade os fez por sua m\u00e3o metter a tormento, querendo que\nlhe confessassem quaes foram na morte de Dona Ignez culpados, e que era\nque seu padre tratava contra elle, quando andavam desavindos por azo da\nmorte d'ella. E nenhum d'elles respondeu a taes perguntas cousa que a\nel-rei prouvesse.\nE el-rei, com queixume, dizem que deu um a\u00e7oute no rosto a Pero Coelho,\ne elle se soltou ent\u00e3o contra el-rei em deshonestas e feias palavras,\nchamando-lhe traidor, \u00e1 f\u00e9 perjuro, algoz e carniceiro dos homens. E\nel-rei, dizendo que lhe trouxessem cebola, vinagre, e azeite para o\ncoelho, enfadou-se d'elles, e mandou-os matar.\nA maneira de sua morte, sendo dita pelo miudo, seria mui estranha e crua\nde contar, c\u00e1 mandou tirar o cora\u00e7\u00e3o pelos peitos a Pero Coelho, e a\nAlvaro Gon\u00e7alves pelas espaduas. E quaes palavras houve e aquelle que\nlh'o tirava, que tal officio havia pouco em costume, seria bem dorida\ncousa de ouvir. Emfim, mandou-os queimar. E tudo feito ante os pa\u00e7os\nonde elle pousava, de guisa que comendo olhava quanto mandava fazer.\nMuito perdeu el-rei de sua boa fama por tal escambo como este, o qual\nfoi havido, em Portugal e em Castella, por mui grande mal, dizendo todos\nos bons que o ouviam, que os reis erravam mui muito indo contra suas\nverdades, pois que estes cavalleiros estavam, sobre seguran\u00e7a, acoutados\nem seus reinos.\n*CAPITULO XXXII*\n_De algumas cousas que el-rei Dom Pedro de Castella mandou fazer, e como\nfez paz com el-rei de Arag\u00e3o entrando em seu reino_.\nN\u00f3s deix\u00e1mos, antes d'isto, el-rei Dom Pedro de Castella em Sevilha,\nprendendo e matando como lhe vinha \u00e1 vontade, e cont\u00e1mos a morte de\nalguns que depois matou, com outras cousas que se, em Portugal, em esta\nses\u00e3o passaram, no anno de trezentos e noventa e oito.\nE depois que se fez aquelle feio escambo dos cavalleiros de um reino ao\noutro, segundo ouvistes em seu logar, mandou el-rei Dom Pedro matar de\nmui cruel morte Dom Pero Nunez de Guzman, adiantado-m\u00f3r da terra de\nLe\u00e3o, que era um d'elles; e mandou matar Guterre Fernandez de Toledo,\nseu reposteiro-m\u00f3r, e trouxeram-lhe a cabe\u00e7a d'elle. E Gomez Carrilho,\nfilho de Pero Rodriguez Carrilho, indo mui ledo em uma gal\u00e9, em que\nel-rei fingiu que o mandava para lhe entregarem a villa de Aljazira,\npara estar ahi por fronteiro, e o patr\u00e3o cortou-lhe a cabe\u00e7a, que mandou\na el-rei, e deitou-lhe o corpo ao mar, e foi presa a mulher e os filhos\nd'este Gomez Carrilho.\nE mandou matar um cavalleiro de Castella, que chamavam Diego Guterrez de\nCeballos. E deitou f\u00f3ra do reino Dom Vasco, arcebispo de Toledo, depois\nque matou seu irm\u00e3o Guterre Fernandez, e mandou-lhe tomar quanto tinha,\nque s\u00f3mente um livro n\u00e3o levou comsigo, nem outra roupa sen\u00e3o a que\ntinha vestida, e foi-se para Portugal, e morreu em Coimbra.\nMandou prender Dom Samuel Levi, seu thesoureiro-m\u00f3r, e gr\u00e3o privado do\nseu conselho, e quantos parentes tinha pelo reino, em um dia; e tomou a\nelle, e aos outros todos, quanta riqueza lhe achou, e foram-lhe dados\ngrandes tormentos, e nas taracenas de Sevilha preso morreu.\nEm este anno, cuidou el-rei Dom Pedro haver guerra com el-rei Vermelho\nde Granada, que diziam que tinha a parte de el-rei de Arag\u00e3o. Este rei\nVermelho lan\u00e7ara rei Mafoma f\u00f3ra do reino, mas logo fez preitesia com\nel-rei Dom Pedro, que o n\u00e3o turvasse com el-rei Mafoma seu inimigo, pero\nque houvesse el-rei gram sanha d'elle, porque lhe em tal tempo quizera\nfazer guerra.\nE isto assocegado, no mez de janeiro de tresentos e noventa e nove,\nfoi-se el-rei a Alman\u00e7an, com muitas companhas que comsigo levava, para\nentrar no reino de Arag\u00e3o. E foram d'esta vez em sua ajuda seiscentos\nportuguezes, e ia por capit\u00e3o d'elles o mestre de Aviz, Dom Martim de\nAvelal, bom fidalgo e muito honrado, e de que se todos tiveram por\ncontentes. E ganhou el-rei de Castella, em Arag\u00e3o, d'esta vez, alguns\nlogares.\nE o cardeal de Bolonha, legado do papa, falou com el-rei que desse logar\na se n\u00e3o espargir tanto sangue como estava prestes, c\u00e1 el-rei de Arag\u00e3o,\ncom todo seu poder, estava disposto para pelejar com el-rei de Castella,\nc\u00e1 via que por guerra guerreada n\u00e3o podia igualar com elle.\nE tinha el-rei de Castella, ent\u00e3o, seis mil de cavallo e muita gente de\np\u00e9. E receiando-se de el-rei Vermelho de Granada, que lhe diziam que\ntinha feito liga com el-rei de Arag\u00e3o para lhe fazer guerra, se mais\ndurasse aquella contenda, pela qual se desencaminharam muito seus\nfeitos, fez paz com el-rei de Arag\u00e3o, fingida e contra sua vontade; e\nfoi que el-rei de Arag\u00e3o enviasse f\u00f3ra do reino o conde Dom Henrique, e\nDom Tello, e Dom Sancho, seus irm\u00e3os, e os cavalleiros e escudeiros de\nCastella que com elles estavam em Arag\u00e3o,--e que el-rei de Castella lhe\ntornasse todos os logares que lhe tomados tinha de seu reino, e d'ahi em\ndiante fossem amigos. E foram d'isto feitas escripturas, e apregoada a\npaz no arrayal, e prouve d'isto muito a quantos alli eram, porque a\nguerra que faziam era muito contra sua vontade.\n*CAPITULO XXXIII*\n_De algumas entradas que el-rei este anno fez no reino de Granada, e\ncomo el-rei Vermelho se veiu p\u00f4r em seu poder, cuidando de ser seguro, e\nel-rei o mandou matar_.\nComo el-rei veiu de Arag\u00e3o e chegou a Sevilha, juntou suas gentes por\nfazer guerra a el-rei Vermelho de Granada, dizendo que queria ajudar\nel-rei Mafoma, e que por seu azo fizera paz com Arag\u00e3o contra sua\nvontade.\nE veiu-se para elle el-rei Mafoma, com quatrocentos de cavallo, e entrou\nem companha de el-rei. E chegou el-rei a Antequera e n\u00e3o a poude tomar,\ne tornou-se, e mandou entrar os seus na veiga de Granada, que eram seis\nmil de cavallo, e venceram os christ\u00e3os duas pelejas, e foram dos mouros\nmortos e captivos, e foi preso o mestre de Calatrava, e Sancho Perez\nd'Ayala, e outros.\nE cuidando el-rei Vermelho que faria prazer a el-rei Dom Pedro, fez\ngrande gasalhado ao mestre e aos outros, cuidando de amansar a vontade\nde el-rei; e soltou o mestre, e alguns cavalleiros dos outros, e deu-lhe\nde suas joias, e enviou-os a el-rei.\nElle agradeceu-lhe mui pouco t\u00e3o grande presente, mas a poucos dias fez\noutra entrada, e ganhou quatro logares de mouros, e p\u00f4z recado em elles,\ne tornou-se a Sevilha.\nOs mouros combateram um d'estes logares, que chamam Sagra, e furando o\nmuro e entrando-o por for\u00e7a, preitejou-se Fern\u00e3o del Gadilho, que o\ntinha, e foi posto em salvo, e veiu-se para el-rei: e el-rei mandou-o\nmatar.\nE deu el-rei volta, outra vez, em Granada, e ganhou outros logares, e\ntornou-se a Sevilha.\nOs mouros aggravaram-se todos, dizendo a el-rei Vermelho que, por a\ncontenda que elle havia com el-rei Mafoma, entr\u00e1ra j\u00e1 el-rei trez vezes\nna terra, e que se perdia o reino de Granada.\nEl-rei houve d'isto receio, e vendo que n\u00e3o podia levar adiante aquillo\nque come\u00e7ara, houve conselho de se vir p\u00f4r em poder e merc\u00ea d'el-rei de\nCastella, e que el-rei, d\u00eas que o visse, haveria piedade d'elle, e teria\ncom elle alguma boa maneira. E partiu logo de Granada, com quatro centos\nde cavallo e duzentos de p\u00e9, e chegaram ao alca\u00e7ar de Sevilha, onde\nel-rei estava, e fizeram-lhe grandes referencias, e el-rei os recebeu\nmui bem.\nEnt\u00e3o lhe fallou um mouro por el-rei de Granada, dizendo entre outras\ncousas, que bem se poderia defender de el-rei Mafoma, que era seu\ncontrario, mas d'elle, que era seu rei e senhor, n\u00e3o se podia defender,\ne que, havido conselho sobre isto, o melhor accordo que achara era\np\u00f4r-se em seu poder e merc\u00ea, \u00e1 qual pedia que tomasse aquelle feito em\nsua m\u00e3o, e que o punha em seu juizo, e que, se sua vontade era de outra\nguisa, fosse sua merc\u00ea de mandar p\u00f4r, elle e os seus, al\u00e9m mar em terra\nde mouros.\nEl-rei respondeu ao mouro que lhe prazia muito da vinda de el-rei e dos\nseus, e que, sobre a contenda d'el-rei Mafoma, elle teria em ello boa\nmaneira como se livrasse.\nEl-rei Vermelho, e os outros fizeram por isto gr\u00e3o reverencia a el-rei,\ntendo que seu feito estava bem, e foram-se mui alegres para as pousadas\nque lhe el-rei mandou dar na judiaria da cidade.\nA cubi\u00e7a, que \u00e9 raiz de todo mal, fez logo saber a el-rei como el-rei\nVermelho trazia muito haver, em aljofar e pedras e joias, e houve gr\u00e3o\ndesejo de cobrar tudo. E mandou ao mestre de S\u00e3o Thiago que o convidasse\nn'outro dia para a ceia, e os maiores honrados que com elle vinham: e\nforam cear com elle at\u00e9 cincoenta.\nAcabada a ceia, estando seguros e nenhum ainda levantado, chegou Martim\nLopez, com homens armados, e prendeu el-rei e todos os outros. E foi\nlogo buscado el-rei, e acharam-lhe tres pedras balaches mui nobres e mui\ngrandes, e acharam a um mouro pequeno, em um correio, setecentas e\ntrinta pedras balaches, e a um seu pagem cincoenta gr\u00e3os de aljofar,\ngrossos como avel\u00e3s esburgadas, e a outro mo\u00e7o, tanto aljofar, grado\ncomo hervan\u00e7os, em que poderia haver uma oitava de alqueire, e aos\noutros, a quem achavam aljofar, a quem pedras, e tudo levaram a el-rei.\nE n'essa hora foram outros homens de armas \u00e1 judiaria, e prenderam todos\nos outros mouros; e todas as dobras e joias, que lhe acharam, tudo\nlevaram a el-rei.\nE foi el-rei levado preso, e todos os seus \u00e1 taracena, e d'ahi a dois\ndias foi tirado a um campo, que dizem Tablada, elle e trinta e sete\ncavalleiros mouros, e alli os mandou el-rei matar todos. E foi el-rei\nDom Pedro o primeiro que deu uma lan\u00e7ada a el-rei Vermelho, que estava\nem cima de um asno, vestido em uma saia de escarlata, e disse:--Toma,\nporque me fizeste fazer m\u00e1 preitesia com el-rei de Arag\u00e3o.--E o mouro\nrespondeu por sua aravia, dizendo:--Pequena cavalgada fizestes.\nE enviou el-rei Dom Pedro a cabe\u00e7a de el-rei Vermelho, e dos outros\ntrinta e sete, a el-rei Mafoma de Granada, e elle enviou-lhe alguns\ncaptivos.\nE posto que el-rei Dom Pedro dissesse muitas raz\u00f5es a colorar este\nfeito, por mostrar que o fizera sem encargo de sua consciencia, todos os\nseus o tiveram por mui gr\u00e3o mal, e lhes prouvera muito de n\u00e3o ser assim.\n*CAPITULO XXXIV*\n_Das aven\u00e7as que el-rei de Castella fez com el-rei de Arag\u00e3o, entrando\nem seu reino, e como as depois n\u00e3o quiz guardar_.\nEl-rei Dom Pedro, que vontade tinha de tornar outra vez \u00e1 guerra de\nArag\u00e3o, dizendo que a paz que fizera f\u00f4ra contra sua vontade, por receio\nde el-rei Vermelho, fez liga com el-rei de Navarra, que fossem amigos e\nse ajudassem, e mandou aos seus que se percebessem: e nenhum n\u00e3o pensava\nque fosse contra Arag\u00e3o, com que havia paz.\nE encobertamente, antes que o el-rei soubesse, por lhe tomar algumas\nvillas, em tanto entrou em Arag\u00e3o, e tomou logo seis castellos, e cercou\na villa de Calatayud. E tendo o cerco sobre ella, ganhou treze castellos\nd'essa comarca.\nEl-rei de Arag\u00e3o, que estava em cabo de seu reino, quando isto soube,\nficou espantado, e mandou a Proven\u00e7a, onde andava o conde D. Henrique e\nseus irm\u00e3os e os outros fidalgos de Castella desterrados do reino,\nfazendo guerra, que o viessem ajudar, e que lhes daria grandes soldos e\nos herdadaria em seu reino.\nEm tanto foi assim afincada a villa de Calatayud, que a tomou el-rei Dom\nPedro por preitesia, e deixou recado em ella, e tornou-se a Sevilha.\nE receiando-se d'el-rei de Fran\u00e7a, por a morte da rainha Dona Branca sua\nmulher, que mandara matar, fez ent\u00e3o sua mui firme amisade com el-rei\nDuarte de Inglaterra, e com o principe de Galles, seu filho, que se\najudassem contra quaesquer outros. E entrou logo em Arag\u00e3o, e chegou a\nCalatayud, que estava j\u00e1 por elle, e ganhou por ahi derredor sete\nlogares.\nE quando entrou por for\u00e7a Carinana, mandou matar quantos no logar havia,\nque n\u00e3o ficou s\u00f3mente um. E a raz\u00e3o por que dizem que os assim mandou\ntodos matar, foi porque elle tendo-a cercada e n\u00e3o a podendo tomar,\nal\u00e7ou o cerco de sobre ella, e os da villa, quando os viram assim\npartir, come\u00e7aram de bradar do muro dizendo seus doestos e maldi\u00e7\u00f5es,\ncada um como lhe prazia; e el-rei teve d'isto grande melancolia, e\nmandou tornar suas gentes sobre o logar, e t\u00e3o rijamente lhe deu o\ncombate que a entrou logo por for\u00e7a; e por isto mandou fazer aquella\ngrande mortandade.\nE cercou mais a cidade de Tarra\u00e7ona e tomou-a. E tendo-a cercada, chegou\no mestre de S\u00e3o Thiago de Portugal, Dom Gil Fernandes de Carvalho, com\nquinhentos cavalleiros e escudeiros mui bem guisados, em sua ajuda, que\nlhe envi\u00e1ra el-rei Dom Pedro, seu tio. Entre os quaes ia Martim Vasques\nde de Goes, e Gon\u00e7alo Mendes de Vasconcellos, e Martim Affonso de Mello,\ne Alvaro Gon\u00e7alves de Moura, e Nuno Viegas, o velho, e Rui Vasques\nRibeiro, e outros muitos e bons fidalgos.\nE d'alli partiu el-rei, e tomou Turiel e onze logares outros, e tomou\nmais a cidade de Segorbe, e a villa de Monvedro, e veiu-se \u00e1 cidade de\nValencia. E havendo uns oito dias que el-rei estava sobre ella, soube\nque el-rei de Arag\u00e3o e o infante Dom Fernando, seu irm\u00e3o, e o conde Dom\nHenrique, e Dom Tello, e Dom Sancho, e as outras gentes por que el-rei\nde Arag\u00e3o mandara, eram todos juntos para vir pelejar com elle, e que\nseriam trez mil de cavallo.\nEl-rei Dom Pedro, que vontade n\u00e3o havia de pelejar com elles, partiu-se\nde Valencia, e foi-se para Monvedro. E el-rei de Arag\u00e3o chegou at\u00e9 duas\nleguas do logar, e poz sua batalha e n\u00e3o achou com quem pelejar, e\ntornou-se. E da ribeira de Monvedro viu el-rei Dom Pedro levar quatro\ngal\u00e9s suas a seis de Arag\u00e3o, que as tomaram, e pesou-lhe muito d'ello.\nAlli se come\u00e7aram de tratar aven\u00e7as entre os reis de Arag\u00e3o e de\nCastella, a saber, que casasse el-rei Dom Pedro com Dona Joanna, filha\nde el-rei de Arag\u00e3o, e Dom Jo\u00e3o, primogenito de Arag\u00e3o com Dona Beatriz,\nfilha de el-rei Dom Pedro, e isto com certas condi\u00e7\u00f5es. E alli onde se\njuntaram para firmar as aven\u00e7as, foi requerido el-rei Dom Pedro, e disse\nque se n\u00e3o achava n'aquella preitesia, e que o n\u00e3o requeressem mais, e\nd'alli se veiu para Sevilha.\nE dizia el-rei Dom Pedro que, n'estes tractos, f\u00f4ra fallado\nsecretamente, que pois elle casava com filha de el-rei de Arag\u00e3o, e\ntomava com elle tal divido, que matasse ou prendesse primeiro o infante\nDom Fernando, seu irm\u00e3o, e o conde Dom Henrique, que eram seus inimigos,\ne que pois o n\u00e3o fizera, que n\u00e3o curava de suas preitesias.\nE bem parece isto ser verdade, porque el-rei de Arag\u00e3o, a poucos dias,\nmandava prender, depois que comeu, o infante Dom Fernando, seu irm\u00e3o,\nque tivera convidado esse dia, porque diziam que se queria ir, com as\ngentes que tinha, para a guerra de Fran\u00e7a. E porque se n\u00e3o deu \u00e1 pris\u00e3o,\nfoi logo morto, e Luiz Manuel, e Diogo Perez Sarmento com elle. E todos\nos do reino lh'o tiveram a mui gr\u00e3o mal, por ser seu irm\u00e3o, e mui nobre\nsenhor como era.\nE depois fez fala el-rei de Arag\u00e3o com el-rei de Navarra, que matassem o\nconde Dom Henrique, e fingiram que falassem em um castello todos tres\nsobre outra cousa. E porque Dom Jo\u00e3o Ramires d'Arellano, camareiro de\nel-rei de Arag\u00e3o, que o conde escolhera que tivesse o castello emquanto\nelles fallassem, n\u00e3o quiz consentir em ser feita tal morte, escapou o\nconde aquelle dia de n\u00e3o ser morto.\n*CAPITULO XXXV*\n_Como el-rei Dom Pedro entrou outra vez em Arag\u00e3o, com sua frota de naus\ne gal\u00e9s, e das cousas que alli fez_.\nPartiu el-rei outra vez de Sevilha, em come\u00e7o do anno de quatro centos e\ndois, aos quinze annos do seu reinado, e entrou em Arag\u00e3o pelo reino de\nValencia, e ganhou Alicante e outros logares. E chegando a cerca de\nBurriana, viu gal\u00e9s, e outros navios, que traziam mantimento a Valencia,\nde que estava mui minguada, e tornou-se do caminho por lhes dar torva, e\npoz seu arrayal onde chamam o Grao, na ribeira do mar, que \u00e9 meia legua\nda cidade, e esperava cada dia sua frota, e gal\u00e9s de Portugal que lhe\nhaviam de vir em ajuda, e todas estavam j\u00e1 em Cartagena, n\u00e3o havendo\ntempo com que partir.\nEl-rei Dom Pedro, n\u00e3o sabendo novas de el-rei de Arag\u00e3o, chegou um\nescudeiro a elle, e disse que el-rei de Arag\u00e3o e o conde Dom Henrique,\ncom todos os outros senhores e gentes, que poderiam ser tres mil de\ncavallo, af\u00f3ra muitos homens de p\u00e9, vinham mui encobertamente por\npelejar com elle, antes que d'alli partisse; e que vinham pelo mar, a\ngeito d'elles, doze gal\u00e9s e outros navios com mantimentos, e que tres\nnoites havia que n\u00e3o faziam fogo, por n\u00e3o serem descobertos, e que ao\noutro dia seriam com elle.\nEl-rei, ouvindo isto, partiu logo d'alli e foi-se a Monvedro, que eram\nquatro leguas. Outro dia, grande manh\u00e3, chegou el-rei de Arag\u00e3o, e\npousaram todos entre Monvedro e o mar, uma legua da villa, e suas gal\u00e9s\ne naves a cerca, e foi acorrida a cidade por mar e por terra. E a cabo\nde doze dias chegou a frota de el-rei de Castella, que eram vinte gal\u00e9s\nsuas e quarenta naus, e dez gal\u00e9s de Portugal, que lhe enviava seu tio\nem ajuda.\nA frota de Arag\u00e3o, quando viu a de Castella, houve receio, e metteu-se\nno rio de Culhera. El-rei Dom Pedro entrou logo na frota, e foi-se p\u00f4r\nna b\u00f4ca do rio, cuidando tomar as gal\u00e9s de Arag\u00e3o. E estando alli,\ncome\u00e7ou de ventar o levante, que \u00e9 travessia n'aquelle logar, e\nmostrando o mar sua grande braveza, cuidaram todos que quebrassem suas\ngal\u00e9s em terra: e el-rei de Arag\u00e3o, com todas suas gentes, aguardavam em\nterra por ellas, crendo todavia, por o vento que se esfor\u00e7ava cada vez\nmais, que de todo ponto eram perdidas. E a gal\u00e9 de el-rei perdera j\u00e1\ntres calabres com suas ancoras, e sobre o quarto estava seu feito. Ao\nsol posto cessou a tormenta, e foi el-rei em mui gr\u00e3o perigo, e partiu\nd'alli deixando seus fronteiros, e tornou-se para Castella.\nEl-rei de Arag\u00e3o cercou Monvedro e n\u00e3o o poude tomar, e partiu d'alli, e\nfoi-se andar por seu reino em tanto.\nE deu outra vez volta el-rei de Castella, e partiu de Sevilha, e entrou\npor Arag\u00e3o, e tomou alguns logares. E os da villa de Orihuela, cuidando\nde ser cercados, fizeram-no saber a el-rei de Arag\u00e3o, e veiu logo com\nseu poder, a duas leguas de onde el-rei de Castella estava, e\nabasteceu-a de viandas de que era minguada.\nE el-rei Dom Pedro n\u00e3o quiz pelejar com elle, mas esteve alguns dias por\naquella terra, e tornou-se para Sevilha, e achou novas como as suas\ngal\u00e9s, que andavam pelo mar, tomaram cinco gal\u00e9s de Arag\u00e3o, e foi-se\nlogo a Cartagena, onde estavam, e mandou matar toda a gente d'ellas, que\nn\u00e3o escapou s\u00f3mente um, salvo os que sabiam fazer remos, porque os houve\nmister.\nD'alli partiu el-rei Dom Pedro para Murcia, sabendo como el-rei de\nArag\u00e3o cercara Monvedro, e foi cercar a villa de Orihuela que dissemos,\ne ganhou a villa e o castello, e tornou-se para Sevilha. Os de Monvedro,\nafincados do cerco e sendo minguados muito de viandas, requeriam muito a\nmerc\u00ea de el-rei que lhes accorresse; e el-rei, porque lhes n\u00e3o podia\naccorrer sen\u00e3o por batalha, n\u00e3o era ousado de o fazer, c\u00e1 elle n\u00e3o\nqueria pelejar com el-rei de Arag\u00e3o, receiando-se dos seus, de que muito\nn\u00e3o fiava. E por\u00e9m buscava outras maneiras de guerra e n\u00e3o por batalha,\nc\u00e1 el-rei Dom Pedro por muitos que mandara matar, e pelos do reino que\nsabia que eram d'elle mal contentes e o desamavam, n\u00e3o se atrevia a p\u00f4r\no campo.\nOs de Monvedro minguados de viandas, em guisa que j\u00e1 comiam as bestas e\nratos, deram a el-rei de Arag\u00e3o o logar por preitesia. E eram dentro,\npara o defender seiscentos homens de armas, af\u00f3ra pe\u00f5es e b\u00e9steiros, e\nos mais d'elles ficaram com o conde Dom Henrique, por grande receio que\nhaviam de el-rei, n\u00e3o embargando o accorrimento que d'elle haver n\u00e3o\npuderam.\n*CAPITULO XXXVI*\n_Como o conde Dom Henrique entrou por Castella com muitas companhas, e\nfoi al\u00e7ado por rei; e como el-rei Dom Pedro mandou desamparar todos os\nlogares que em Arag\u00e3o tinha filhados_.\nMonvedro ganhado por el-rei de Arag\u00e3o, foi-se para Barcelona, e vieram\nalli alguns capit\u00e3es das companhias por que elle mandava, e firmaram com\nelle de ser alli no fevereiro seguinte, para entrar em Castella com o\nconde Dom Henrique. El-rei Dom Pedro soube d'isto parte e foi-se a\nBurgos, onde mand\u00e1ra juntar suas gentes. Entanto aquelle e os capit\u00e3es\ndas companhias, eram juntos, e partiram de Sarago\u00e7a para entrar em\nCastella.\nE vinham ahi capit\u00e3es de Arag\u00e3o, a saber, o conde de Denia, e Dom\nFilippe de Castro, e outros cavalleiros; e de Fran\u00e7a, Mosse Beltr\u00e3o de\nClaquin, e o conde das Marchas, e o sr. de Bain, e o marechal de\nAndemar, marechal de Fran\u00e7a, e outros cavalleiros. E de Inglaterra,\nMosse Boitro de Carvabai, Mosse Estacio, e Mosse Martim de Gorimai, e\nMosse Guilhem Allinante, e Mosse Jo\u00e3o de Obrens, e muitos outros\ncavalleiros e homens de armas de Inglaterra, e de Guiana, e de Gasconha,\ne d'outras na\u00e7\u00f5es.\nE chegaram todos \u00e1 viila de Alfaro, e n\u00e3o curaram d'ella, e foram outro\ndia a Calahorra, cidade n\u00e3o forte, e preitejaram-se os do logar com o\nconde, e acolheram-no dentro com aquellas gentes, as quaes alli foram\ncertificadas como el-rei Dom Pedro estava em Burgos, e que n\u00e3o havia\nvontade de pelejar com elles. E houveram accordo, dizendo ao conde Dom\nHenrique que pois tanta boa gente era contente de o aguardar em esta\ncavalgada, que se chamasse rei de Castella.\nE elle, \u00e1 primeira, come\u00e7ou-se de escusar de o fazer; d\u00eas-ahi, como \u00e9\ndoce cousa reinar, antes de muitas palavras outorgou que lhe prazia, e\nfoi al\u00e7ado ent\u00e3o por rei: e pediram-lhe, os que com elle vinham, grandes\nmerc\u00eas e officios no reino, e elle mui de grado lhe outorgava tudo,\ndando o que ganhado tinha, e promettendo o que era por ganhar; c\u00e1 em tal\ntempo assim lhe cumpria de o fazer. E foi isto no anno de mil e\nquatrocentos e quatro.\nPartiu d'alli el-rei Dom Henrique caminho de Burgos, onde era el-rei Dom\nPedro, e chegou a Navarrete, o qual se lhe deu nem ousando de esperar\ncombate, e foi combatida Briviesca, e tomou-a.\nEl-rei Dom Pedro, sabendo tudo isto, sabbado de Ramos, bem pela manh\u00e3,\nmandou matar Jo\u00e3o Fernandez de Tovar, por queixume que houve de seu\nirm\u00e3o, e, sem dizer cousa nenhuma aos seus, cavalgou por se partir logo.\nE vieram a elle os maiores da cidade, dizendo que os n\u00e3o deixasse, c\u00e1 o\nconde era oito leguas d'alli: e n\u00e3o prestando nenhuma cousa suas raz\u00f5es,\nquitou-lhe a menagem, e partiu-se logo, e foram com elle alguns\ncavalleiros, e seiscentos mouros de cavallo, que andavam na guerra em\nsua ajuda, que lhe dava el-rei de Granada. E muitos dos seus ficaram em\nBurgos, a que prazia de tudo isto, e quem se d'elle partia n\u00e3o ousava de\ntornar mais a elle.\nE aquelle dia que el-rei d'alli partiu, mandou suas cartas a todos os\nque por elle tinham as fortalezas que em Arag\u00e3o ganhara, que as\ndesamparassem, e destruissem se pudessem, e se viessem para elle. E\nelles fizeram-no assim, mas muitos d'elles se foram para el-rei Dom\nHenrique, e aqui cessou ent\u00e3o de todo a guerra de Arag\u00e3o, a qual ia em\nonze annos que durava.\nCertamente perdera-se o reino de Arag\u00e3o todo, se fortuna t\u00e3o cedo n\u00e3o\nabreviara os annos da vida d'este rei Dom Pedro, c\u00e1 onze vezes que elle\nem Arag\u00e3o fez entrada, ganhou cincoenta e dois logares aqui contidos,\naf\u00f3ra outros muitos que aqui n\u00e3o s\u00e3o nomeados. E chegou el-rei Dom Pedro\na Toledo, e poz recado na cidade, e d'ahi partiu para Sevilha.\nOs de Burgos, vendo que se n\u00e3o poderiam defender de el-rei Dom Henrique,\nmandaram-lhe seus recados e receberam-no na cidade, e coroou-se alli por\nrei, e vieram a elle muitos procuradores das villas e cidades do reino,\ne receberam-no por senhor, em guisa que do dia da coroa\u00e7\u00e3o a vinte e\ncinco dias, foi todo o reino a seu mandado: e elle recebia todos\ngraciosamente, e a nenhum era negado cousa que pedisse. E deu el-rei Dom\nHenrique alli muitas terras \u00e1quelles senhores e cavalleiros que vinham\ncom elle, assim estrangeiros como seus naturaes, e mandou a Arag\u00e3o por\nsua mulher e filhos, e foi recebida honradamente.\nD'alli partiu e veiu-se a Toledo, e foi na cidade grande revolta se o\nreceberiam ou n\u00e3o, porque a uns prazia que o recebessem, outros eram de\ntodo em contrario; pero finalmente houveram accordo de o acolher em\nella, e foi recebido com grande prazer.\n*CAPITULO XXXVII*\n_Como el-rei Dom Pedro de Castella enviara uma sua filha a Portugal, e\ncomo elle partiu de Sevilha com temor que houve dos da cidade_.\nEl-rei Dom Pedro estando em Sevilha, soube novas d'estas cousas todas, e\nposto em gr\u00e3o pensamento, accordou com os seus de enviar pedir ajuda a\nel-rei de Portugal, seu tio. E por lhe dar m\u00f3r cargo de se mover a lhe\nfazer tal ajuda, enviou-lhe dizer que bem sabia como era posto casamento\nda infante Dona Beatriz, sua filha, com o infante Dom Fernando seu\nprimogenito filho, e que por\u00e9m lhe mandava a dita infante e toda a\nquantia do haver que era posto de lhe dar ao tempo do casamento, e que\nessa Dona Beatriz ficasse herdeira dos reinos de Castella, e de Le\u00e3o. E\nmandou-a logo de Sevilha, e com ella Martim Lopez de Trujillo, um homem\nde que elle muito fiava, e mais certa quantia de dobras que deixara a\nesta infante Dona Maria de Padilha, sua madre, com joias, e aljofar, e\noutras cousas.\nE partida Dona Beatriz de Sevilha para Portugal houve el-rei Dom Pedro\nnovas como el-rei Dom Henrique caminhava de Toledo para Sevilha, e\naccordou de enviar pelo thesouro que tinha no castello de Almodovar, que\nera todo em moedas de prata e de oiro, e fez armar uma gal\u00e9 em que o\npoz, com todo o haver que tinha na cidade, e entregou a gal\u00e9 a Martim\nYanhez, seu thesoureiro, e mandou-lhe que se fosse a Tavira, villa de\nPortugal no reino do Algarve, e que alli attendesse a gal\u00e9, at\u00e9 que elle\nfosse. E tambem mandou carregar muitas azemolas de seus thesouros, e\nlevou comsigo mui grande haver de oiro, e pedras, e aljofar assim do que\ntomara a el-rei Vermelho e aos seus, como de outro muito que tinha\njunto, e isso mesmo da prata toda a que poude levar.\nE el-rei estando assim para partir de Sevilha, disseram-lhe como os da\ncidade se alvoro\u00e7avam contra elle, e o queriam roubar alli onde estava:\ne com gr\u00e3o temor que houve, partiu-se logo para Portugal. E levou\ncomsigo Dona Constan\u00e7a, e Dona Isabel, suas filhas, c\u00e1 Dona Beatriz, a\nmaior, havia j\u00e1 mandada, como dissemos. E iam com el-rei Dom Pedro,\nMartim Lopes de Cordova, mestre d'Alcantara, e Diogo Gomes de Catanheda,\ne Pero Fernandez Cabe\u00e7a-de-vacca, e outros.\nE segundo alguns escrevem, como el-rei partiu de Sevilha, taes ahi\nhouve, dos que iam com as azemolas do haver, que vendo como el-rei fugia\ndo reino por aquella guisa, se tornavam para a cidade com o que levavam,\ne outras saiam do logar e lhe roubaram parte d'aquelle haver. E Misser\nGil Boca-negra, seu almirante, que era genovez, armou em Sevilha uma\ngal\u00e9 e outros navios, e foi tomar a gal\u00e9 do haver, em que ia Martim\nYanhez para Tavira, no rio Guadalquivir, c\u00e1 ainda n\u00e3o era mais arredado.\nE era o haver, que ia em ella, trinta e seis quintaes de oiro, e outras\nmuitas joias, de que el-rei Dom Henrique depois houve a maior parte.\n*CAPITULO XXXVIII*\n_De como el-rei Dom Pedro de Castella fez saber a seu tio que era em seu\nreino, e como se el-rei escusou de o v\u00ear, e lhe fazer ajuda_.\nEl Rei de Portugal, em esta ses\u00e3o, pousava nos pa\u00e7os de Vallada, que s\u00e3o\na cerca de uma villa que chamam Santarem, e era isto no mez de maio. E\nquando el-rei Dom Pedro, mandou sua filha Dona Beatriz, como anteagora\nouvistes, para casar com o infante D. Fernando, por azo de haver melhor\najuda de el-rei seu tio, soaram primeiro novas em Vallada, onde pousava\nel-rei, que el-rei de Castella lhe mandava duas suas filhas, que estavam\nj\u00e1 nas Alca\u00e7ovas, que s\u00e3o d'alli vinte leguas; mas n\u00e3o sabiam dizer\ncertamente porque as mandava a el-rei, nem em que inten\u00e7\u00e3o. El-rei de\nPortugal, que parte n\u00e3o sabia que el-rei seu sobrinho era em tal pressa\nposto, cuidando que as infantes vinham por outra maneira, por\u00e9m que n\u00e3o\nera mais que aquella uma, mandava correger casas e camaras em seus\npa\u00e7os, em que ellas bem podessem pousar.\nEl-rei de Castella partiu de seu reino, e t\u00e3o trigoso andar poz no\ncaminho, sem se detendo em nenhum logar, que antes que sua filha\nchegasse onde el-rei de Portugal estava, a achou elle no caminho em que\nvinha. E chegou el-rei Dom Pedro a Serpa, e d'alli a Beja, e d\u00eas-ahi a\nCoruche, que eram vinte e uma leguas d'onde el-rei seu tio estava, e\nd'alli lhe fez saber como vinha, e a ajuda e accorrimento que lhe d'elle\ncumpria, e isso mesmo o casamento de sua filha com o infante Dom\nFernando, seu filho.\nEl-rei de Portugal, como isto soube, teve bem assaz em que cuidar, e\nmandou-lhe dizer que n\u00e3o fosse mais adiante, mas que estivesse alli at\u00e9\nque visse seu recado. E mandou chamar o infante Dom Fernando seu filho,\nque n\u00e3o era ahi, e com elle e com seus privados houve conselho sobre\neste feito, e foi falado por alguns que o visse e acolhesse em seu\nreino, e que o ajudasse a cobrar sua terra. D\u00eas-ahi, cuidando bem\nn'isto, acharam que o n\u00e3o podia el-rei fazer sem grandes trabalhos, e\ngasto, e mui gr\u00e3o damno de seu reino, e, o peior de tudo, n\u00e3o ter\nnenhumas azadas raz\u00f5es como tal feito podesse vir a acabamento, quejando\ncumpria, porque, el-rei Dom Henrique, seu irm\u00e3o, tinha j\u00e1 toda Castella\na seu mandar, salvo alguns logares, t\u00e3o poucos, de que n\u00e3o era de fazer\nconta; e com isto haviam lhe grande odio todos os do reino, assim\ngrandes como pequenos. De guisa que bem era de cuidar quanto todos\nfariam por cobrar em elle; pois quem houvesse de lan\u00e7ar f\u00f3ra de Castella\nel-rei Dom Henrique e todos os da sua parte, assim por batalha como por\nguerra guerreada, gr\u00e3o poderio lhe convinha ter, e, n\u00e3o se fazendo\nsegundo seu desejo, ficava ao depois em grande homisio e guerra com\nelle. Recebel-o outrosim em seu reino, e n\u00e3o trabalhar de o ajudar,\nera-lhe grande vergonha e prasmo; d\u00eas-ahi, vendo-o e falando-lhe, n\u00e3o se\npoderia escusar d'elle.\nPor\u00e9m accordaram que o mais s\u00e3o conselho era que o n\u00e3o visse elle nem o\ninfante seu filho, buscando algumas ras\u00f5es coloradas por que parecesse\nque direitamente se escusava.\nEnt\u00e3o foi a Coruche o conde Dom Jo\u00e3o Affonso Tello, onde el-rei de\nCastella estava esperando a resposta de seu tio, cuidando de ser\naposentado em Santarem, e disse-lhe como el-rei vira seu recado, e\nsoubera parte da sua vinda de que guisa era, e que elle de boa mente o\nrecebera em seu reino e o ajudara a cobrar sua terra, como era raz\u00e3o e\ndireito, mas que por ent\u00e3o n\u00e3o estava em ponto de o poder fazer como\ncumpria, porque d'aquellas vezes que lhe elle fizera ajuda, assim por\nmar como por terra, os fidalgos de seu reino vieram d'elle e de suas\ngentes mui mal contentes e escandalisados; e que vinham em sua companha\ntaes, com que alguns houveram raz\u00f5es, e que era por for\u00e7a haver entre\nelles grandes bandos e arruidos, o que a servi\u00e7o d'ambos pouco cumpria.\nAl\u00e9m d'isto, que sabia bem como o infante Dom Fernando, seu filho, era\nsobrinho da rainha Dona Joanna, que ent\u00e3o novamente entrara em Castella,\nirm\u00e3 de sua madre Dona Constan\u00e7a, filha de Dom Jo\u00e3o Manuel, e que n\u00e3o\nentendia de postar com elle que lhe muito prouvesse de tal ajuda. E foi\nassim certamente, segundo alguns escrevem, que o infante deu gr\u00e3o torva,\npor\u00e9m razoada, em este feito. Com estas e outras raz\u00f5es escusou o conde\nel-rei seu senhor, que elle \u00e1quelle tempo o n\u00e3o podia v\u00ear, nem lhe fazer\nmais ajuda da que feita havia; e despediu-se d'elle, e foi-se para a\npousada.\n*CAPITULO XXXIX*\n_Como el-rei de Castlla partiu de Coruche, e se foi de Portugal; e quaes\nenviaram em sua companha_.\nN\u00e3o embargando as raz\u00f5es que dissemos, e outras muitas que faladas foram\nentre el-rei de Castella e o conde sobre o feito de seu negocio, bem\nentendeu el-rei Dom Pedro que o fim de todos seus ditos era n\u00e3o haver\nel-rei seu tio vontade de lhe dar acolhimento em seu reino, nem lhe\nfazer ajuda por nenhuma guisa: e houve d'isto t\u00e3o grande queixume, que\nn\u00e3o poude com sua vontade que o logo n\u00e3o desse a entender por algum\nmodo.\nE depois que o conde com elle falou, e se despediu e se foi para a\npousada, ficou el-rei triste e melancolioso, e com torvado gesto tomou\ndobras, que tinha na m\u00e3o, e deitou-as por cima de um alpendre das casas\nonde pousava. Um cavalleiro de sua companha, vendo isto que el-rei\nfazia, disse-lhe, como sorrindo, por que deitara assim aquellas dobras,\nc\u00e1 melhor f\u00f4ra dal-as a alguns dos seus, a que prestassem; e el-rei lhe\nrespondeu dizendo: \u00abn\u00e3o cureis d'isso, c\u00e1 quem as semeia as vir\u00e1 depois\ncolher\u00bb; dando a entender, se seus annos t\u00e3o poucos n\u00e3o foram, que elle\nlhe fizera de bom talante guerra, por n\u00e3o achar ent\u00e3o em elle ajuda nem\nacolhimento nenhum. E houve seu accordo de se ir a Albuquerque e deixar\nahi as filhas e todas suas cargas; e chegando ao logar n\u00e3o o quizeram em\nelle acolher, antes se lan\u00e7aram dentro alguns dos que iam em sua\ncompanha.\nE el-rei, vendo como seus feitos iam cada vez peior, mandou dizer a\nel-rei de Portugal, seu tio, que pois lhe outra ajuda fazer n\u00e3o queria,\nque lhe enviasse carta de seguro, por que podesse passar por seu reino:\ne isto fazia elle temendo-se do infante Dom Fernando de Portugal, por\nser sobrinho da mulher de el-rei Dom Henrique, como dissemos.\nA el-rei de Portugal prouve muito, e enviou a elle o conde de Barcellos,\nque ouvistes, e Alvaro Peres de Castro, que se fossem com elle pelo\nreino, e o puzessem em salvo em Galliza. E elles se foram por elle, e\ncome\u00e7aram de andar seu caminho, e quando chegaram \u00e1 Guarda, segundo\nalguns contam, disseram elles alli a el-rei que se queriam tornar e n\u00e3o\npodiam ir mais com elle, porquanto se receiavam do infante Dom Fernando,\nque os enviara amea\u00e7ar por irem assim em sua companha, e que el-rei lhes\ndeu ent\u00e3o seis mil dobras, e duas cintas de prata, e dois estoques, que\nse fossem com elle at\u00e9 Galliza. E se assim adveio por esta guisa, isto\nfoi fingido que elles disseram, c\u00e1 o infante n\u00e3o tinha raz\u00e3o de lhes tal\ncousa mandar dizer, pois, com seu accordo, f\u00f4ra ordenado em conselho que\no acompanhassem at\u00e9 f\u00f3ra do reino. E dizem que chegaram com elle at\u00e9\nLamego, e mais n\u00e3o. E \u00e1 partida lhe furtou o conde uma filha de el-rei\nDom Henrique, seu irm\u00e3o, que el-rei levava presa comsigo, de idade de\nquatorze annos, que chamavam Dona Leonor dos le\u00f5es, porque el-rei Dom\nPedro, por queixume que de seu padre havia, sendo esta mo\u00e7a em poder de\nsua ama, nada de mui poucos mezes, com gr\u00e3o crueldade a mandou tomar, e,\nesfaimados os le\u00f5es que criava antes por um dia, no curral onde andavam\nmandou que lh'a lan\u00e7assem em camisa, e foi assim feito como elle mandou.\nE os le\u00f5es vieram, e chegaram-se a ella, e prouve a Deus que lhe n\u00e3o\nfizeram nenhum nojo, mas assim como se d'ella houvessem piedade, se\nchegavam a ella sem lhe fazerem outro mal. Foi isto dito a el-rei por\nalguns seus, e mandou-a el-rei tirar d'alli, e entregar \u00e1quelles que a\ncriavam, e poz-se por\u00e9m em ella tal guarda, que nunca seu padre a poude\nhaver. E levava-a el-rei ent\u00e3o comsigo, e o conde a trouxe a el-rei de\nPortugal, e depois foi entregue a el-rei Dom Henrique, seu padre.\n*CAPITULO XL*\n_Como el-rei Dom Pedro chegou a Galliza, e matou o arcebispo de S\u00e3o\nThiago, e se foi para Inglaterra_.\nPartiu de Lamego el-rei de Castella, assaz desamparado e com mui pouca\ngente, c\u00e1 n\u00e3o iam com elle mais que at\u00e9 duzentos de cavallo, e chegou a\nMonte-rei, uma villa de Galliza, e d'alli escreveu a Logronho, e a\nSoria, e a Samora, que tinham sua voz, que se esfor\u00e7assem, c\u00e1 elle lhes\naccorreria.\nE fez saber a el-rei de Navarra, e ao principe de Galles, como era em\nGalliza, e queria saber que esfor\u00e7o tinha em elles, e esperou alli o\narcebispo de S\u00e3o Thiago, e Dom Fernando de Castro, seu alferes-m\u00f3r e\nadiantado em terra de Le\u00e3o e das Asturias, o qual antes d'isto viera a\nGalliza por seu mandado, e falou com todos os prelados, e cavalleiros, e\nescudeiros, e cidades, e villas, e fortalezas, de guisa que todos\ntiveram sua voz.\nE estiveram tres somanas, havendo conselho se era melhor ir-se a Samora,\ne d'ahi caminho de Logronho, pois el-rei Dom Henrique, com suas\ncompanhas, estava em Sevilha; ou ir-se a Bayona de Inglaterra catar seus\naccorros com o principe de Galles. E teve-se el-rei antes ao conselho da\nida de Inglaterra, que tornar outra vez a seu reino, porque t\u00e3o pouco se\nfiava nos que tinham voz por elle, como nos outros que n\u00e3o eram da sua\nparte.\nE partiu de Monte-rei, e foi ter o S\u00e3o Jo\u00e3o a S\u00e3o Thiago de Galliza, e\nalli houve accordo com os seus de matar o arcebispo, e tomar-lhe as\nfortalezas. E onde Dom Sueiro vinha seguro, a seu mandado, dia de S\u00e3o\nPedro, que lhe mandara el-rei dizer que viesse ao conselho, entrando\npela cidade foi morto \u00e1 porta da igreja de S\u00e3o Thiago, por Fern\u00e3o Perez\nTurrich\u00e3o, e Gon\u00e7alo Gomez Gallinhato, e dois cavalleiros que lhe mal\nqueriam, a que el-rei mandara que o matassem, e mataram mais Pero\nAlvarez, de\u00e3o de S\u00e3o Thiago, homem mui letrado e bem sisudo, e el-rei o\nolhava de cima da igreja, como se tudo isto fazia. E tomou el-rei quanto\nhaver o arcebispo tinha no castello da rocha, e deu as fortalezas a Dom\nFernando de Castro, e fel-o conde de Trastamara, e de Lemos, e de\nSarria, d'onde so\u00eda ser conde el-rei Dom Henrique, para elle e para\ntodos seus herdeiros lidimamente nascidos.\nE Dom Alvaro Perez, seu irm\u00e3o, e Andr\u00e9 Sanchez de Gres, que vinham v\u00ear\nel-rei, quando souberam a morte do arcebispo, tornaram-se para suas\nterras com medo, e tomaram voz d'el-rei Dom Henrique.\nEl-rei partiu d'alli, e foi-se para a Corunha, e n'aquelle logar lhe\nchegou recado do principe de Galles, que se fosse para o senhorio de\nInglaterra, e que elle lhe ajudaria a cobrar o reino. E partiu el-rei da\nCorunha, e levou comsigo vinte e duas naus, e uma gal\u00e9, e uma carraca, e\ndeixou Dom Fernando de Castro em Galliza, e commetteu-lhe todo seu\npoderio, e el-rei ia na carraca com suas filhas todas tres, e o thesouro\ntodo que comsigo levava, que eram trinta e seis mil dobras em oiro\namoedado, porque todo o outro thesouro deixara na gal\u00e9 que Martim Yanhez\nhavia de levar a Tavira, e levava muitas joias de oiro, e de aljofar, e\nde pedras de gr\u00e3o valor. E passou o mar, e chegou a Bayona, onde ia\ncorregendo seus feitos, de que mais por ora dizer n\u00e3o queremos.\n*CAPITULO XLI*\n_Como el-rei Dom Henrique chegou a Sevilha, e da allian\u00e7a que fez com\nel-rei de Portugal_.\nEl-rei Dom Henrique partiu de Toledo, sabendo tudo o que adviera a\nel-rei Dom Pedro em Sevilha, e isso mesmo em Portugal, e como se f\u00f4ra\ndepois a Galliza. E chegou a Cordova, onde o receberam com gr\u00e3o prazer,\ne d'ahi levou caminho de Sevilha, sabendo que tinha voz por elle, onde\nfoi recebido com t\u00e3o gr\u00e3o festa que, pero el-rei chegou pela manh\u00e3 a\ncerca do logar, passava de meio dia quando entrou em seu pa\u00e7o.\nE partiu el-rei com os seus, e com aquellas companhas que com elle\nvinham, em guisa que todos foram mui contentes, e mandou-os para suas\nterras; pero ficaram com elle Mosse Beltr\u00e3o de Claquin, e outros\nsenhores, com alguns inglezes e bret\u00f5es, que eram todos companhias, at\u00e9\nmil e quinhentas lan\u00e7as.\nE esteve el-rei em Sevilha quatro mezes, e antes que d'alli partisse,\nescreveu a el-rei Dom Pedro de Portugal, como queria haver paz e amisade\ncom elle, e que elle enviaria taes, ao extremo, de que fiava por seus\nprocuradores, para tratarem aven\u00e7a entre elles, e que el-rei Dom Pedro\nmandasse ahi outros, que com seus feitos fossem concordados.\nE foi assim de feito, que enviou el-rei Dom Henrique Dom Jo\u00e3o, bispo de\nBadalhouce, e Diego Gomez de Toledo, cavalleiro, e el-rei de Portugal\nenviou Dom Jo\u00e3o, bispo de Evora, e Dom Alvaro Gon\u00e7alves, prior do\nHospital; e juntaram-se todos na ribeira de Caya, no extremo dos reinos.\nE alli trataram, pelos ditos reis, que fossem fieis amigos um do outro,\ne houvessem paz e concordia, e que el-rei de Castella trabalhasse, a\ntodo seu poder, que el-rei de Arag\u00e3o fosse amigo de el-rei de Portugal\npela guisa que o elle era, e que el-rei de Arag\u00e3o deixasse vir para\nPortugal a infanta Dona Maria, filha do dito rei Dom Pedro, mulher que\nf\u00f4ra do infante Dom Fernando, marquez de Tortosa, com todo o seu, ou\nviver na terra qual ella antes quizesse; e louvaram e approvaram as\naven\u00e7as que em outro tempo foram feitas em Agreda, entre el rei Dom\nFernando e el-rei Dom Diniz, seus av\u00f3s.\nOutrosim, Mafamede, rei de Granada, tratou logo amisade com el-rei Dom\nHenrique, e ficou por seu amigo.\nE partiu el-rei de Sevilha, e foi-se a Galliza, e cercou em Lugo Dom\nFernando de Castro, que tinha voz de el-rei Dom Pedro, e n\u00e3o o poude\ntomar, e preitejou com el-rei, que se lhe el-rei Dom Pedro n\u00e3o\naccorresse at\u00e9 cinco mezes, que deixasse o reino e lhe entregasse todas\nas fortalezas, e se quizesse ficar em sua merc\u00ea, que lhe desse a villa\nde Castro Exarez, d'onde sua linhagem se chamava de Castro, e elle\nconde, depois que lh'a el-rei Dom Pedro dera, e que em este tempo n\u00e3o se\nfizesse guerra de uma parte \u00e1 outra, a qual cousa lhe Dom Fernando mui\nmal teve.\nA el-rei Dom Henrique prouve d'isto, e tornou-se para Burgos, e alli\nordenou c\u00f4rtes, nas quaes foram juntos os maiores do reino; e certos da\nvinda que el-rei Dom Pedro queria fazer, lhe foi promettida ajuda para\ndespeza da guerra, e offerecidos os corpos a seu servi\u00e7o, como bem podia\nv\u00ear. E el-rei, em tanto, mandava por gentes que lhe cada dia vinha, com\nque partia grandemente, e lhe fazia muita honra. E porque dos feitos\nd'estes reis ambos, mais n\u00e3o adveiu em tempo de el-rei Dom Pedro de\nPortugal, cessaremos de mais dizer d'elles, e em quanto elles juntam\nsuas gentes para a batalha que depois ouvireis, contaremos n\u00f3s outras\ncousas, segundo requer a ordenan\u00e7a d'esta obra. Mas antes que as\ndigamos, ouvi isto que achamos escripto, a saber, que f\u00e9ria quinta,\nvinte e dois dias do mez de outubro d'esta presente era de Cesar de mil\ne quatrocentos e quatro annos, foi feito um movimento no c\u00e9o, desde a\nmeia noite para adiante, o qual foi por esta guisa: correram todas as\nestrellas do levante para o poente, e depois que todas foram juntas,\ncome\u00e7aram de correr umas c\u00e1 e outras l\u00e1; d\u00eas-ahi deixaram-se estalar do\nc\u00e9o tantas e t\u00e3o espessas, que, depois que foram baixas no ar, pareciam\ngrandes fogueiras, e que o c\u00e9o e o ar ardia, e que a terra queria arder;\ne o c\u00e9o parecia partido por muitas partes alli onde estrellas n\u00e3o\nestavam; e n\u00e3o havia homem que isto visse, que n\u00e3o fosse fortemente\nespantado; e era tamanho o medo, que quantos isto viam todos cuidavam de\nserem mortos, durando isto por mui grande espa\u00e7o. E isto escrevemos por\nn\u00e3o haverdes por nova cousa quando outra tal acontecer, d\u00eas-ahi por\nrelembran\u00e7a das maravilhas que Deus faz.\n*CAPITULO XLII*\n_Como el-rei de Portugal enviou seus embaixadores a casa do principe de\nGalles, por se desculpar do que el-rei Dom Pedro dizia_.\nA gr\u00e3o melancolia que levou el-rei Dom Pedro de Castella do mau\ngasalhado que em Portugal achara, lhe fez que \u00e1s vezes n\u00e3o podia, em\nfalando, que o n\u00e3o desse a entender com sanha, e algumas horas, estando\ncom o principe, presente muitos, fazia queixume do mau acolhimento que\nachara em seu tio el-rei de Portugal, esperando d'elle receber o\ncontrario, dizendo que o n\u00e3o havia tanto pelo seu, como das infantes\nsuas filhas, as quaes lhe devera de agasalhar e receber em sua\nencommenda: e fallando em ello muito largamente, mostrava com isto\ngeitos e semblante que de o vingar tinha gr\u00e3o desejo.\nE foi isto assim falado, e por taes palavras, que n\u00e3o minguou quem o\nescrevesse a el-rei de Portugal, o qual, conhecendo sua preversa\ncondi\u00e7\u00e3o, e prevendo o que advir podia, ordenou de se enviar desculpar\npresente o principe, mostrando que a culpa n\u00e3o f\u00f4ra em elle, assim em\nseu recebimento, como em agasalhar suas filhas; e mandou all\u00e1 o bispo de\nEvora, e Gomez Louren\u00e7o do Avelal, os quaes chegaram a Gasconha, onde\nel-rei e o principe por ent\u00e3o estavam.\nElles alli, ordenou o principe o dia e hora para dizerem sua embaixada,\na qual, proposta ante elle, sendo el-rei presente, come\u00e7aram de contar\npelo miudo tudo o que em Portugal diziam alguns de que se ei-rei Dom\nPedro agravava, fazendo queixume de el-rei seu tio, e que elles eram\nalli vindos para o mostrarem sem culpa, como a sua merc\u00ea bem podia v\u00ear.\nEl-rei de Castella respondeu a isto dizendo, que assim era como elles\ndiziam, que elle se sentia por mui agravado d'elle, pelo n\u00e3o receber em\nseu reino e lhe dar acolhimento como era raz\u00e3o, sendo seu tio, irm\u00e3o de\nsua madre, e que m\u00f3r melancolia havia n\u00e3o dar gasalhado \u00e1s infantes suas\nfilhas, que da aspereza que contra elle mostrara, porque se as el-rei\nseu tio tomara e lh'as tivera em sua terra guardadas, com alguns haveres\nque elle levava, onde era certo que estariam seguras, que elle ficara\ndesempachado d'ellas, e ent\u00e3o tornara a recobrar seu reino. Dizendo que\nmuitos se al\u00e7aram contra elle, que o n\u00e3o fizeram se o viram presente,\nmas pelo empacho que tinha, das filhas, que lhe conviera de fugir com\nellas, n\u00e3o tendo logar seguro onde as deixasse; porque \u00e1quelle tempo que\nas deixar quizera em algum castello de sua terra, em nenhum havia tanta\nfiusa por que ousasse de o fazer.\nSobre isto correram tantas palavras entre el-rei Dom Pedro e os\nembaixadores, at\u00e9 que pediram por merc\u00ea, ao principe, que fizesse\npergunta a el-rei, se \u00e1quelle tempo que elle escrevera a seu tio que era\nem seu reino, se lhe fizera saber por sua carta que lhe queria deixar\nsuas filhas e o thesouro que comsigo trazia, segundo elle arrazoava\npresente elle. E o principe lh'o perguntou ent\u00e3o, e elle disse que n\u00e3o\nementara nenhuma cousa das filhas, nem do haver que levava comsigo.\n--Pois, disse o principe, nem vosso tio n\u00e3o era adivinho do que v\u00f3s\ntinheis na vontade.\nEnt\u00e3o fizeram recontamento ao principe das ajudas que de Portugal\nrecebera, assim por mar como por terra, e como todos os senhores e\nfidalgos, que all\u00e1 foram, vieram d'elle e dos seus mui mal contentes e\nescandalisados, e que esta f\u00f4ra uma das raz\u00f5es por que o el-rei seu tio\nn\u00e3o quizera ter em sua terra, por se n\u00e3o levantarem, entre uns e os\noutros, bandos, e arruidos, e mortes.\nArrazoaram tanto at\u00e9 que se enfadaram, e o principe, conhecendo de\nraz\u00e3o, disse que o n\u00e3o havia por culpado como antes; e na parte da nau e\nhaveres, que lhe el-rei de Portugal enviava dizer que em Inglaterra eram\nretidos contra raz\u00e3o, que elle os faria logo desembargar, como seu amigo\nque era e queria ser. E assim o fez de feito, que em breves dias foram\ndespachados.\n*CAPITULO XLIII*\n_Como Dom Jo\u00e3o, filho de el-rei Dom Pedro de Portugal, foi feito mestre\nde Aviz_.\nV\u00f3s ouvistes, no primeiro capitulo d'esta historia, como depois da morte\nde Dona Ignez, ei-rei sendo infante, nunca mais quiz casar, nem depois\nque reinou quiz receber mulher, mas houve um filho de uma dona, a que\nchamaram Dom Jo\u00e3o. D'este mo\u00e7o deu el-rei cargo a Dom Nuno Freire,\nmestre de Christus, que o criava e tinha em seu poder, e que criando-o\nelle assim, sendo em idade at\u00e9 sete annos, veiu-se a finar o mestre de\nAviz, Dom Martim do Avelal.\nO mestre de Christus, como isto soube, foi-se logo a el-rei Dom Pedro,\nque ent\u00e3o pousava na Chamusca, e pediu-lhe aquelle mestrado para o dito\nseu filho, que levava em sua companha, e el-rei foi mui ledo do\nrequerimento, e muito mais ledo de lh'o outorgar.\nEnt\u00e3o tomou o mo\u00e7o o mestre nos bra\u00e7os, e tendo-o em elles, lhe cingiu\nel-rei a espada e o armou cavalleiro, e beijou-o na boca, lan\u00e7ando-lhe a\nben\u00e7\u00e3o, dizendo que Deus o accrescentasse de bem em melhor, e lhe desse\ntanta honra em feitos de cavallaria, como d\u00e9ra a seus av\u00f3s: a qual\nben\u00e7\u00e3o foi em elle bem cumprida, como adiante ouvireis.\nE disse ent\u00e3o el-rei contra o mestre:\n--Tenha este mo\u00e7o isto por agora, c\u00e1 sei que mais alto ha de montar, se\neste \u00e9 o meu filho Jo\u00e3o de que me a mim algumas vezes falaram, como quer\nque eu queira antes que se cumprisse no infante Dom Jo\u00e3o, meu filho, que\nn'elle; c\u00e1 a mim disseram que eu tenho um filho Jo\u00e3o, que ha de montar\nmuito alto, e por que o reino de Portugal ha de haver mui grande honra.\nE porque eu n\u00e3o sei qual d'estes Jo\u00f5es ha de ser, nem o podem saber em\ncerto, eu azarei como sempre acompanhem ambos estes meus filhos, pois\nque ambos s\u00e3o de um nome, e escolha Deus um d'elles para isto, qual sua\nmerc\u00ea f\u00f4r. Como quer que muito me suspeita a vontade que este ha de ser,\ne outro nenhum n\u00e3o, porque eu sonhava uma noite o mais estranho sonho\nque v\u00f3s vistes: a mim parecia, em dormindo, que eu via todo Portugal\narder em fogo, de guisa que todo o reino parecia uma fogueira, e estando\nassim espantado vendo tal cousa, vinha este meu filho Jo\u00e3o, com uma vara\nna m\u00e3o, e com ella apagava aquelle fogo todo. E eu contei isto a alguns\nque raz\u00e3o teem de entender em taes cousas, e disseram-me que n\u00e3o podia\nser, salvo que alguns grandes feitos lhe haviam de sair de entre as\nm\u00e3os.\nOra, assim adveiu depois, como dizemos, que, isto feito, tornou-se o\nmestre de Christus para a villa, e mandou seu recado aos commendadores\nda ordem de Aviz, que viessem logo alli, por haver de falar com elles\ncousas que eram de servi\u00e7o de Deus e prol de sua ordem (e isto fazia o\ndito mestre porquanto a ordem de Aviz e a de Christus s\u00e3o ambas da ordem\nde S\u00e3o Bento), os quaes, por suas cartas e requerimento, vieram logo\n\u00e1quelle logar.\nO mestre falou ent\u00e3o com o commendador-m\u00f3r, e com Fern\u00e3o Soares, e Vasco\nPeres, todo o que era vontade de el-rei, d\u00eas-ahi entrou com elles em\ncabido, segundo costume de sua ordem, e o commendador propoz ao mestre,\nem nome seu e dos commendadores, dizendo que elle bem sabia como seu\nsenhor, o mestre de Aviz Dom Martim do Avelal, era finado, e que elles\nn\u00e3o tinham mestre que os houvesse de reger como cumpria a servi\u00e7o de\nDeus, segundo sua ordem mandava, nem entendiam de eleger outro, sen\u00e3o\naquelle que lhes elle desse; e que pois elle era de sua regra e o fazer\npodia, que lhe pediam por merc\u00ea, que por servi\u00e7o de Deus e bem da dita\nordem, lhes desse mestre que os houvesse de reger segundo sua regra\nmandava.\nO mestre respondeu que diziam mui bem, como bons cavalleiros e bem\nsisudos, e porque elle era tido de fazer e requerer toda causa que fosse\nservi\u00e7o de Deus e prol de sua ordem, que por\u00e9m queria tomar cargo de\nlhes dar mestre que os houvesse de reger segundo sua regra mandava, e\nque para ser seu mestre lhes dava Dom Jo\u00e3o, filho de el-rei Dom Pedro,\nque elle criava, que entendia que era tal senhor que os regeria como\ncumpria a servi\u00e7o de Deus e prol de sua ordem.\nO commendador-m\u00f3r, e os outros disseram ent\u00e3o, que lhe tinham em grande\nmerc\u00ea de lhes dar t\u00e3o honrado senhor por seu mestre: e logo o dito Dom\nJo\u00e3o foi chamado, e foram-lhe tirados os vestidos seculares, e lan\u00e7ado o\nhabito da ordem de Aviz, e como lhe foi vestido, o commendador-m\u00f3r e os\noutros lhe beijaram o m\u00e3o por seu mestre e senhor. E isto assim feito,\nfoi elle levado para a ordem de Aviz, de onde era mestre, e alli se\ncriou alguns annos, at\u00e9 que come\u00e7ou de florescer em manhas, e bondades,\ne autos de cavallaria, segundo a historia adiante dir\u00e1, contando cada\numas em seu logar.\nE se alguns quizerem dizer que os poucos annos de sua idade e n\u00e3o\nlegitima nascen\u00e7a embargavam de n\u00e3o poder ser mestre, a taes se responde\nque o Papa dispensou com elle, que posto que provido fosse antes do\ntempo, e nado de n\u00e3o legitimo matrimonio, que seus bons costumes e\nhonroso proveito que d'elle vinha \u00e1 ordem, corrigia tudo isto, e que o\nconfirmava em elle.\n*CAPITULO XLIV*\n_Como foi trasladada Dona Ignez para o mosteiro de Alcoba\u00e7a, e da morte\nd'el-rei Dom Pedro_.\nPorque semelhante amor, qual el-rei Dom Pedro houve a Dona Ignez,\nraramente \u00e9 achado em alguma pessoa, por\u00e9m disseram os antigos que\nnenhum \u00e9 t\u00e3o verdadeiramente achado, como aquelle cuja morte n\u00e3o tira da\nmemoria o grande espa\u00e7o do tempo. E se algum disser que muitos foram j\u00e1,\nque tanto e mais que elle amaram, assim como Adriana, e Dido, e outras\nque n\u00e3o nomeamos, segundo se l\u00ea em suas epistolas, responde-se que n\u00e3o\nfalamos em amores compostos, os quaes alguns autores abastados de\neloquencia, e florescentes em bem ditar, ordenaram segundo lhes prouve,\ndizendo em nome de taes pessoas raz\u00f5es que nunca nenhuma d'ellas cuidou;\nmas falamos d'aquelles amores que se contam e l\u00eaem nas historias, que\nseu fundamento teem sobre verdade.\nEsse verdadeiro amor houve el-rei Dom Pedro a Dona Ignez, como se d'ella\nnamorou sendo casado e ainda infante, de guisa que, pero d'ella no\ncome\u00e7o perdesse vista e fala, sendo alongado, como ouvistes, que \u00e9 o\nprincipal azo de se perder o amor, nunca cessava de lhe enviar recados,\ncomo em seu logar tendes ouvido. Quanto depois trabalhou pela haver, e o\nque fez por sua morte, e quaes justi\u00e7as n'aquelles que em ella foram\nculpados, indo contra seu juramento, bem \u00e9 testemunho do que n\u00f3s\ndizemos.\nE sendo lembrado de lhe honrar seus ossos, pois lhe j\u00e1 mais fazer n\u00e3o\npodia, mandou fazer um moimento de alva pedra, todo mui subtilmente\nobrado, pondo elevada sobre a campa de cima a imagem d'ella, com cor\u00f4a\nna cabe\u00e7a, como se f\u00f4ra rainha. E este moimento mandou p\u00f4r no mosteiro\nde Alcoba\u00e7a, n\u00e3o \u00e1 entrada, onde jazem os reis, mas dentro na egreja, \u00e1\nm\u00e3o direita, a cerca da capella-m\u00f3r.\nE fez trazer o seu corpo do mosteiro de Santa Clara de Coimbra, onde\njazia, o mais honradamente que se fazer pode, c\u00e1 ella vinha em umas\nandas, muito bem corrigidas para tal tempo, as quaes traziam grandes\ncavalleiros, acompanhadas de grandes fidalgos, e muita outra gente, e\ndonas, e donzellas e muita clerezia.\nPelo caminho estavam muitos homens com cirios nas m\u00e3os, de tal guisa\nordenados, que sempre o seu corpo foi, por todo o caminho, por entre\ncirios accesos; e assim chegaram at\u00e9 ao dito mosteiro, que eram d'alli\ndezesete leguas, onde com muitas missas e gr\u00e3o solemnidade foi posto seu\ncorpo n'aquelle moimento. E foi esta a mais honrada traslada\u00e7\u00e3o que at\u00e9\n\u00e1quelle tempo em Portugal f\u00f4ra vista.\nSemelhavelmente mandou el-rei fazer outro tal moimento, e tambem obrado,\npara si, e f\u00eal-o p\u00f4r a cerca do seu d'ella, para quando acontecesse de\nmorrer o deitarem n'elle.\nE estando el-rei em Estremoz, adoeceu de sua postremeira d\u00f4r, e jazendo\ndoente, lembrou-se como, depois da morte de Alvaro Gon\u00e7alves e Pero\nCoelho, elle f\u00f4ra certo que Diogo Lopes Pacheco n\u00e3o f\u00f4ra em culpa da\nmorte de Dona Ignez, e perdoou-lhe todo queixume que d'elle havia, e\nmandou que lhe entregassem todos seus bens: e assim o fez depois el-rei\nDom Fernando, seu filho, que lh'os mandou entregar todos, e lhe al\u00e7ou a\nsenten\u00e7a, que el-rei seu padre contra elle pass\u00e1ra, quanto com direito\npoude.\nE mandou el-rei em seu testamento, que lhe tivessem em cada um anno,\npara sempre, no dito mosteiro, seis capell\u00e3es que cantassem por elle\ncada dia uma missa officiada, e sairem sobre ella com cruz e agua benta.\nE el-rei Dom Fernando, seu filho, por se isto melhor cumprir, e se\ncantarem as ditas missas, deu depois ao dito mosteiro, em doa\u00e7\u00e3o por\nsempre, o logar que chamam as Paredes, termo de Leiria, com todas as\nrendas e senhorio que n'elle havia.\nE deixou el-rei Dom Pedro, em seu testamento, certos legados, a saber: \u00e1\ninfante Dona Beatriz, sua filha, para casamento, cem mil libras; e ao\ninfante Dom Jo\u00e3o, seu filho, vinte mil libras; e ao infante Dom Diniz,\noutras vinte mil; e assim a outras pessoas.\nE morreu el-rei Dom Pedro uma segunda-feira de madrugada, dezoito dias\nde janeiro da era de mil e quatrocentos e cinco annos, havendo dez annos\ne sete mezes e vinte dias, que reinava, e quarenta e sete annos e nove\nmezes e oito dias de sua idade. E mandou-se levar \u00e1quelle mosteiro que\ndissemos, e lan\u00e7ar em seu moimento, que est\u00e1 junto com o de Dona Ignez.\nE porquanto o infante Dom Fernando, seu primogenito filho, n\u00e3o era ent\u00e3o\nahi, foi el-rei detido e n\u00e3o levado logo, at\u00e9 que o infante veiu; e \u00e1\nquarta-feira foi posto no moimento.\nE diziam as gentes, que taes dez annos nunca houve em Portugal, como\nestes que rein\u00e1ra el-rei Dom Pedro.\nFim da Chronica de El-rei D. Pedro I\nDuas palavras\nChronica do Senhor Rei D. Pedro I, oitavo Rei de Portugal, Prologo\nCapitulo I--Do reinado de el-rei Dom Pedro, oitavo rei de Portugal, e\ndas condi\u00e7\u00f5es que n'elle havia.\nCapitulo II--Como el-rei de Castella mandou pelo corpo da rainha Dona\nMaria, sua madre, e da carta que enviou a el-rei de Portugal, seu tio.\nCapitulo III--Das cartas que o papa, e el-rei de Arag\u00e3o enviaram a\nel-rei de Portugal sobre a morte de el-rei, seu padre.\nCapitulo IV--Da maneira que el-rei Dom Pedro tinha nos desembargos de\nsua casa.\nCapitulo V--De algumas cousas que el-rei Dom Pedro ordenou por bem de\njusti\u00e7a e prol de seu povo.\nCapitulo VI--Como el-rei mandou degolar dois seus criados, porque\nroubaram um judeu e o mataram.\nCapitulo VII--Como el-rei quizera metter um bispo a tormento, porque\ndormia com uma mulher casada.\nCapitulo VIII--Como el-rei mandou capar um seu escudeiro, porque dormiu\ncom uma mulher casada.\nCapitulo IX--Como el-rei mandou queimar a mulher de Affonso Andr\u00e9, e de\noutras justi\u00e7as que mandou fazer.\nCapitulo X--Como el-rei mandava matar o almirante; e da carta que lhe\nenviou o duque e commum de Genova, rogando por elle.\nCapitulo XI--Das moedas que el-rei Dom Pedro fez, e da valia do oiro e\nda prata n'aquelle tempo.\nCapitulo XII--Da maneira que os reis tinham para fazer thesouros, e\naccrescentar n'elles.\nCapitulo XIII--Por que guisa el-rei Dom Pedro de Castella come\u00e7ou de\njuntar thesouro.\nCapitulo XIV--Como el-rei fez conde e armou cavalleiro Jo\u00e3o Affonso\nTello, e da gr\u00e3o festa que lhe fez.\nCapitulo XV--Das aven\u00e7as que el-rei de Castella e el-rei Dom Pedro de\nPortugal firmaram entre si, e como lhe el-rei de Portugal prometteu de\nfazer ajuda contra Arag\u00e3o.\nCapitulo XVI--De algumas pessoas que el-rei Dom Pedro de Castella mandou\nmatar, e como casou com a rainha Dona Branca e a deixou.\nCapitulo XVII--Como se come\u00e7ou o desvairo entre el-rei Dom Pedro de\nCastella e o conde Dom Henrique, seu irm\u00e3o, o qual foi aso porque se o\nconde foi f\u00f3ra do reino.\nCapitulo XVIII--Como e por qual aso se come\u00e7ou a guerra entre Castella e\nArag\u00e3o.\nCapitulo XIX--Como el-rei de Castella entrou por Arag\u00e3o e das cousas que\nfez n'este anno.\nCapitulo XX--Como el-rei Dom Pedro fez matar o mestre de S\u00e3o Thiago Dom\nFradarique, seu irm\u00e3o, no alca\u00e7ar de Sevilha.\nCapitulo XXI--Como el-rei partiu de Sevilha por tomar Dom Tello, seu\nirm\u00e3o, para o matar; e como matou o infante Dom Jo\u00e3o, seu primo.\nCapitulo XXII--Como foi quebrada a tregua de um anno que havia entre os\nreis, e como el-rei Dom Pedro juntou armada por fazer guerra a Arag\u00e3o.\nCapitulo XXIII--Como veiu o cardeal de Bolonha para fazer paz entre\nel-rei de Castella e el-rei de Arag\u00e3o, e os n\u00e3o poude p\u00f4r de accordo.\nCapitulo XXIV--Como el-rei de Castella enviou pedir ajuda de gal\u00e9s a\nel-rei de Portugal, e como partiu com sua frota por fazer guerra a\nArag\u00e3o.\nCapitulo XXV--Como se partiu o almirante de Portugal com as dez gal\u00e9s, e\ncomo el-rei Dom Pedro desarmou a frota; e de outras cousas.\nCapitulo XXVI--Como o cardeal de Bolonha quizera tratar paz entre os\nreis e n\u00e3o poude, e como as gentes d'el-rei Dom Pedro pelejaram com o\nconde e o desbarataram.\nCapitulo XXVII--Como el-rei Dom Pedro de Portugal disse por Dona Ignez\nque fora sua mulher recebida, e da maneira que em ello teve.\nCapitulo XXVIII--Do testemunho que alguns deram no casamento de Dona\nIgnez, e das raz\u00f5es que sobre ello propoz o conde Dom Jo\u00e3o Affonso.\nCapitulo XXIX--Raz\u00f5es contra isto, de alguns que ahi estavam, duvidando\nmuito n'este casamento.\nCapitulo XXX--Como os reis de Portugal e de Castella fizeram entre si\naven\u00e7a, que entregassem, um ao outro, alguns que andavam seguros em seus\nreinos.\nCapitulo XXXI--Como Diogo Lopes Pacheco escapou de ser preso, e foram\nentregues os outros, e logo mortos cruelmente.\nCapitulo XXXII--De algumas cousas que el-rei Dom Pedro de Castella\nmandou fazer, e como fez paz com el-rei de Arag\u00e3o entrando em seu reino.\nCapitulo XXXIII--De algumas entradas que el-rei este anno fez no reino\nde Granada, e como el-rei Vermelho se veiu p\u00f4r em seu poder, cuidando de\nser seguro, e el-rei o mandou matar.\nCapitulo XXXIV--Das aven\u00e7as que el-rei de Castella fez com el-rei de\nArag\u00e3o, entrando em seu reino, e como as depois n\u00e3o quiz guardar.\nCapitulo XXXV--Como el-rei Dom Pedro entrou outra vez em Arag\u00e3o, com sua\nfrota de naus e gal\u00e9s, e das cousas que alli fez.\nCapitulo XXXVI--Como o conde Dom Henrique entrou por Castella com muitas\ncompanhas, e foi al\u00e7ado por rei; e como el-rei Dom Pedro mandou\ndesamparar todos os logares que em Arag\u00e3o tinha filhados.\nCapitulo XXXVII--Como el-rei Dom Pedro de Castella enviava uma sua filha\na Portugal, e como elle partiu de Sevilha com temor que houve dos da\ncidade.\nCapitulo XXXVIII--De como el-rei Dom Pedro de Castella fez saber a seu\ntio que era em seu reino, e como se el-rei escusou de o v\u00ear, e lhe fazer\najuda.\nCapitulo XXXIX--Como el-rei de Castella partiu de Coruche, e se foi de\nPortugal; e quaes enviaram em sua companha.\nCapitulo XL--Como el-rei Dom Pedro chegou a Galliza, e matou o arcebispo\nde S\u00e3o Thiago, e se foi para Inglaterra.\nCapitulo XLI--Como el-rei Dom Henrique chegou a Sevilha, e da allian\u00e7a\nque fez com el-rei de Portugal.\nCapitulo XLII--Como el-rei de Portugal enviou seus embaixadores a casa\ndo principe de Galles, por se desculpar do que el-rei Dom Pedro dizia.\nCapitulo XLIII--Como Dom Jo\u00e3o, filho de el-rei Dom Pedro de Portugal,\nfoi feito mestre de Aviz.\nCapitulo XLIV--Como foi trasladada Dona Ignez para o mosteiro de\nAlcoba\u00e7a, e da morte d'el-rei Dom Pedro.\nEnd of Project Gutenberg's Chronica de el-rei D. Pedro I, by Fern\u00e3o Lopes", "source_dataset": "gutenberg", "source_dataset_detailed": "gutenberg - Chronica de el-rei D. Pedro I\n"} +] \ No newline at end of file